Direito a uma boa morte (eutanásia)
ABAFADORES – em Miguel Torga e em Michael Haneke
ABAFADORES – em Miguel Torga e em Michael Haneke
Certamente
animais únicos com consciência de nascer condenados à morte, os humanos ainda
não descobriram a arte de bem morrer, exceto casos especiais ou ligados à
crença religiosa ou em suicídio bem organizado e bem sucedido.
Leio
o conto «Alma-Grande», o Abafador, de Miguel Torga, em Novos Contos da
Montanha, e consigo percecionar o medo comunitário das últimas palavras na
hora da morte, que poderiam condenar toda uma família ou mesmo uma comunidade
de judeus/cristãos-novos à Inquisição fatal. Abafa-se a dignidade humana com
receio da rebeldia da última hora, no momento em que alguém avisa que chegara a hora de chamar o padre, representante de uma religião dita de amor
transformada em polícia das almas. Mau morrer aquele às mãos de Alma-Grande, o
«pai da morte»:
«O seu papel não era olhar; era ir inteiro com
as mãos ao pescoço, com o joelho à arca do peito, e retirar-se uns minutos
depois, como um instrumento que tivesse cumprido correctamente a sua função.
[…]
Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo,
gritos de desespero, apelos sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão
sagrada! Quantas vezes! Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos
ouvidos doutra maneira.
- Não... Não... Ainda não».
No
último caso de Alma-Grande, Isaac salva-se do abafamento graças à presença inesperada
do filho – uma criança de nome Abel.
Vejo
o filme AMOUR (2012) de Michael Haneke e nele observo a condição humana
do envelhecimento do casal melómano e da doença paulatinamente degenerativa e
degradante da mulher. Regressada do hospital, ainda lúcida, faz prometer ao
marido que a não interne, pois detesta hospitais e instituições e, por isso, quer
viver e morrer em casa. A solidão do casal progride ao ritmo da progressão da
doença. A sua única filha vive no estrangeiro e é de opinião que a mãe deve ser
internada, desconhecendo a promessa feita pelo pai. Ele, velho e cansado, cuidador
amoroso, desempenha o papel de abafador, servindo-se da almofada. E mata-a por
amor.
As
problemáticas do abafamento nas duas obras são diferentes. No primeiro caso, o
abafamento é consentido pela comunidade judaica por razões político-religiosas
e, no segundo caso, o abafamento não é consentido pela sociedade, que, por sua
vez, não apoia os doentes e os cuidadores no domicílio, nem zela pela boa
morte.
Sabendo
todos nós, humanos, que a morte é certa e que o envelhecimento está em curso,
temos o dever de debater o assunto, em busca da melhor solução em cada caso.
Claro que o assunto apenas é premente para os ateus, uma vez que os crentes estão
na mão de Deus, dono e senhor das suas vidas e das suas mortes. Estes, porém,
não têm o direito de impedir aqueles de defenderem as suas propostas em prol de
uma boa morte com dignidade – uma morte medicamente assistida, na certeza, de
que a maioria das pessoas, em Portugal, no século XXI, morre sozinha e não
morre onde desejaria morrer, conforme Estudo
Epidemiológico dos Locais de Morte em Portugal em 2010 e Comparação com as
Preferências da População Portuguesa, de
Barbara GOMES, Vera P. SARMENTO,
Pedro Lopes FERREIRA e Irene J. HIGGINSON, que conclui:
«Dos 105 471 óbitos que ocorreram em Portugal em
2010, 61,7% deram-se em hospitais/clínicas e 29,6% no domicílio.
Dos 1 286 residentes em Portugal que
participaram no inquérito PRISMA, 51,2% expressaram preferência por morrer em
casa, 35,7% escolheram uma unidade de cuidados paliativos, 8,9% o hospital e
2,2% lar ou residência.
Existe um desfasamento substancial entre a
realidade e preferências para local de morte em Portugal.
Para ir ao encontro destas preferências é
prioridade nacional desenvolver serviços de cuidados paliativos domiciliários,
que previnam o aumento de óbitos hospitalares e que apoiem a morte em casa, com
qualidade e respeitando preferências individuais»[1].
Não se
pode abafar uma problemática destas, para a qual a Professora Laura
Ferreira dos Santos tem vindo a chamar a atenção com os seus artigos,
nomeadamente, no seu artigo, motivador deste texto, «Miguel Torga, o abafador e
a a eutanásia. Quem são os verdadeiros abafadores?»[2].
Braga, 5
de dezembro de 2016
Maria
José Domingues
http://www.actamedicaportuguesa.com/revista/index.php/amp/article/viewFile/429/3706 e lido no dia 4 de dezembro de 2016.
[2]
Artigo consultado a 5 de dezembro, em
https://www.publico.pt/2014/08/31/sociedade/noticia/miguel-torga-o-abafador-e-a-eutanasia-1668153
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