- Fernando Pessoa, em 24-8-1930:
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.
Novas
Poesias Inéditas. Fernando Pessoa.
(Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria
Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).
«[…]
Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos
sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?»
Livro do
Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I.
Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e
Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.)
Lisboa: Ática, 1982. - 21."Fase confessional", segundo
António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares,
Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.
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Bernardo Soares - Cheguei
hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa.
Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num
relâmpago íntimo, que
não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém.
Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto;
e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o
poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reencarnar, reencarnei sem mim,
sem ter eu reencarnado.
Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se
não escreveu.
Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar,
não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e
desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar.
[…]
E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma
geometria do abismo;
sou o nada em torno do qual este movimento gira, só
para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem.
Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros,
o centro de tudo com o nada à roda
- Alberto Caeiro, em 5-6-1922 - Dizes-me: tu és mais alguma coisa
Dizes-me: tu és mais alguma coisa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm ideias sobre o mundo?
Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a
ter teorias sobre as coisas:
Só me obriga a ser consciente.
Se sou mais que uma pedra ou uma planta?
Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou
menos.
Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.
Sei que a pedra é a real, e que a planta
existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo
mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo
mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a
pedra e a planta.
Não sei mais nada.
Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve
versos.
Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta
nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são
pedras;
E as plantas são plantas só, e não
pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas
por isto,
Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, «é uma
pedra»,
Digo da planta, «é uma planta»,
Digo de mim «sou eu».
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?
“Poemas
Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota
explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática,
1946 (10ª ed. 1993). 1ª publ. in “Poemas
Inconjuntos”. In Athena, nº 5. Lisboa: Fev. 1925.
·
Álvaro de Campos, em 15-1-1928:
TABACARIA
Não
sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
[…]
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem
porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
[…]
Poesias de Álvaro de Campos.
Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 252. 1ª publ. in
Presença, nº 39. Coimbra: Jul. 1933.
Cada um é um mundo; e como em cada fonte
Cada um é um mundo; e como em cada
fonte
Uma deidade vela, em cada homem
Porque
não há de haver
Um
deus só de ele homem?
Na encoberta sucessão das cousas,
Só o sábio sente, que não foi mais nada
Que
a vida que deixou.
s.d.
Quem és, não o serás, que o
tempo e a sorte
Quem és, não o serás, que o tempo e a
sorte
Te
mudarão em outro.
Para quê pois em seres te empenhares
O
que não serás tu?
Teu é o que és, teu o que tens, de quem
E
o que outro tiveres?
22-9-1931
Vivem em nós inúmeros;
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu escrevo.
13-11-1935
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