Com quem dialoga Fernando Pessoa?
Os
textos pessoanos dialogam com textos autorais.
O
dialogismo dos seus textos mereceu a atenção de Dionísio Vila Maior em Fernando
Pessoa: Heteronímia e Dialogismo[1].
Tendo por base a obra de Mikhaïl
Bakhtine, Vila Maior salienta a reflexão do escritor russo «sobre as
potencialidades dialógicas, polifónicas e alteronímicas da linguagem, do
romance e da criação artística» e aplica a teoria de Bakhtine aos escritos de
Pessoa.
Refletindo
e estudando tais conceitos, desenvolvi parte da minha tese de mestrado, Fernando Pessoa e «A Nova Poesia Portuguesa»:
da teoria à concretização poética em Pauis[2], tentando provar o dialogismo abrangente dos referidos
textos com obras literárias de valor universal, mas também com textos
nacionais, alimentando polémicas incentivadoras do desenvolvimento cultural.
Dos textos em prosa sobre a nova poesia portuguesa, salienta-se o diálogo com os textos de autores
do movimento Renascença Portuguesa, nomeadamente com os de Teixeira de
Pascoais, mas também com textos de escritores fora do referido movimento como
Adolfo Coelho e Hernâni Cidade. O poema Pauis, para além dos referidos
textos, dialoga com as cartas de Mário de Sá
Carneiro e, indiretamente, com Santa Rita Pintor de quem as cartas falam.
Tudo isto vem a propósito da leitura em curso
de Presença da «presença» de David Mourão-Ferreira[3],
na parte respeitante aos escritores do Orpheu, identificados com
o escritor urbano lisboeta, e os escritores do movimento Presença, identificados
com o escritor de província. Refere então Mourão Ferreira que «o lugar» tem
fundamental importância na criação da obra literária e cita um artigo do
heterónimo pessoano Álvaro de Campo na revista Presença, nº 5, “como que
a propósito”:
Os
cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria, sem as montadas, os cavaleiros
seriam peões. O lugar é que faz a localidade. Estar é ser.[4]
Sem contexto dialógico, o valor textual da
citação é abrangente e ambíguo, próprio do valor poético da conotação; dentro
do contexto dialógico, o valor significativo fica ampliado pela ironia do
diálogo entre o Orpheu e a Presença. A polifonia de vozes (um eu heteronímico
- Álvaro de Campos -, um tu presencista, acrescido da mão de Pessoa que escreve)
abre possibilidades interpretativas acrescidas, dando uma maior eficácia à
leitura.
Desenvolvendo a frase pessoana «Estar é ser»,
David Mourão-Ferreira separa os três movimentos pelo «estar». Assim, a Renascença
Portuguesa com o fulcro no Porto impusera-se “por uma rusticidade
tradicionalista, filosoficamente enevoada”; o Orpheu, “por um imperial e
megalómano sentido urbanístico, sonhado em Lisboa; e a presença, enfim,
iria impor-se por um plácido provincianismo descritivo, porém com asas de
europeia inquietação, - colocadas em Coimbra”.
Novembro, 2015.
Maria José Domingues
[1] Vila Maior, Dionísio, Fernando
Pessoa: Heteronímia e Dialogismo – o contributo de Mikhaïl Bakhtine,
Livraria Almedina, Coimbra, 1994.
[2]
http://www.lusosofia.net/textos/20130604-domingues_maria_jose_fernando_pessoa_e_a_nova_poesia_portuguesa.pdf
[3] Mourão Ferreira, Presença da «presença»,
1ª edição, Brasília Editora, 1977, pp.27-28.
[4] Campos, Álvaro de, «Ambiente», in Revista presença,
nº 5, 4-11-1927.
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