«Cá
estou» - frase
estranha para começo de obra-prima. Porém, faz sobressair o lugar e o sujeito do verbo
estar. «Estar é ser» escreve Álvaro de Campos na revista presença.
Mais adiante, eis
a resposta identificadora do «eu» que narra em O DELFIM: «Sou um
visitante de pé (e em corpo inteiro, como numa fotografia de álbum), um Autor
apoiado na lição do Mestre».
O
Mestre explícito é fictício - o abade Agostinho Saraiva, decifrador do
território da Gafeira, entre 1790 e 1801, numa obra intitulada Monografia do
Termo da Gafeira, que o «Autor» / narrador tem sob a mão direita, uma vez
que ele é o deus criador do universo da narrativa e, como nos diz José Saramago,
deus é maneta, pois apenas se lhe aponta a mão direita e não se sabe nada
acerca da mão esquerda.
A
escolha do topónimo Gafeira é de grande importância na obra. Percorrendo
Portugal encontramos topónimos apontadores de gafos (leprosos), por exemplo, no
distrito de Aveiro, Gafanha da Nazaré, e, no distrito de Setúbal, a Quinta da
Gafaria. Tomemos o topónimo como a metáfora escondida por razões políticas de
Portugal salazarento e gafento, envolto em névoa. A névoa da Gafeira provém da
Lagoa, lugar simbólico do pântano português. Também se poderia associar ao verso do
poema Nevoeiro de Fernando Pessoa, último poema da Mensagem: «Ó Portugal, hoje és nevoeiro...».
«Cá
estou», a 31 de Outubro de 1967; ‘Já cá estive’, a 31 de outubro de 1966 -
«datas de caçador». De que anda à caça o «Autor» / narrador?
Sabe-se
que o cauteleiro anda à caça de informações: «O Infante?» – indaga «a pedir-nos
contas». E acrescenta: «Crime», e vai espetando o dente único e inquisidor
cosendo a intriga discutida em praça pública. Certo é que morreram a esposa do Infante
e o criado mulato, no espaço daquele ano em que o narrador se ausentara.
Então,
o «Autor» / narrador parte à caça das recordações de há um ano com envolvência
do Infante, para ele o Engenheiro, de sua mulher, Maria das Mercês, e do criado
mestiço. A primeira cena é cinematográfica e reporta-se à saída da missa pela
porta da igreja que dá para o Largo, paisagem próxima da janela do quarto do
narrador voyeur, cujas sensações visuais são transmitidas ao leitor como o
registo de uma câmara de filmagem: um jaguar[1] com
dois cães negros, o criado e o casal, embarcados na «Barca do Inferno». O
Engenheiro não fita ninguém – era a tal regra: «Estes tipos quanto mais nos
olham, menos nos querem ver…», acrescentando que o seu tio Gaspar não
olhava o povo «por pena», «receava que essa gente cegasse quando lhe sentisse o
brilho do olhar». Eis o distanciamento de classes sociais da sociedade
portuguesa na época. Todavia, já era notório o peso do olhar pejado de crítica
social por parte do povo, na frase do Engenheiro.
O
Largo é o grande espaço desertificado, dominado pelo muro/muralha, que parte da
sacristia e o ensombra. Dentro do universo metafórico, teríamos um país
esburacado, pobre, desertificado pela emigração e pela guerra do ultramar,
dominado pelo muro da opressão que sai da igreja e ocupa a lagoa. Não há melhor
painel, a que não falta a romanização dominadora de antanho, nem o símbolo da
classe dominante: o jaguar.
Apesar
do nevoeiro e do fumo, a confiança na história da humanidade dentro do ideário
neorrealista mantém-se firme num universo eivado de dispersão.
A igreja
reforma-se com o Padre Novo; a classe dominante autodestrói-se pelo crime dúbio
que envolve a morte da esposa e a do criado; o povo vencedor ocupa a lagoa fértil
por direito dos Noventa e Oito homens da Gafeira que a adquiriram em hasta
pública.
23
de novembro de 2015
Maria
José Domingues
[1] No
âmbito da intertextualidade, recorda-se que Alves Redol, o mestre do
neorrealismo, em O Muro Branco (1966), inicia a obra com a chegada de um
automóvel topo de gama á porta do café, para espanto de todos, certamente o
Lancia de boca entreaberta como um peixe. O dono do carro era D. António de
Farragudo, frequentador do café, no qual tinha a sua corte. Também o Engenheiro,
antes de ter o Jaguar, tivera um Lancia . Se é certo que os automóveis topo de gama representam o poder e o dinheiro, talvez a metáfora também possa significar a evolução
estilística dentro do mesmo ideário.