sábado, 10 de outubro de 2015

Dialogismo em Aparição - Vergílio Ferreira e Fernando Pessoa




Em A Angústia da Influência, Harold Bloom escreve que «os poetas fortes fazem a história lendo-se mal uns aos outros, de modo a desobstruir um espaço de imaginação para si próprios» [1].

Estamos a dissertar sobre dois escritores portugueses de grande talento. Sabe-se que Vergílio Ferreira combateu Fernando Pessoa, aliando-se às opiniões de certos neorrealistas e críticos literários do mesmo pendor. Disso nos dá conta em Conta-Corrente, 2 (pp.25-26).
Eduardo Lourenço debruça-se sobre a questão e afirma que Vergílio Ferreira combateu Pessoa como a um «fraterno inimigo», embora com «virulência imprópria, chocante mesmo», todavia, para além disso, acontece o «encontro», que «não se situa na mesma linha, nem ocupa o mesmo lugar nos respetivos itinerários espirituais». E explica: «o que em Pessoa é visão nuclear, olhar inverso consumidor de substância de tudo aparece em Vergílio Ferreira como passagem, tentação vencida ou suspensa, reposição da experiência humana numa Luz que sem ignorar a Noite a deseja transfigurar». E conclui: «A obra de Arte é justamente o exato lugar da noite humana transfigurada»[2]. No fabrico da obra de Arte se encontram os dois desassossegados autores em tempo diferente.

Tudo isto vem a propósito da releitura de Aparição e do diálogo que se trava entre o eu do     narrador-escritor e, talvez, Fernando Pessoa. Partindo dessa hipótese, vejamos então de que modo Vergílio Ferreira em Aparição desobstrui o espaço para a sua imaginação desassossegada, no espaço ocupado pelo desassossegado Pessoa:

«Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. Eu te odeio, meu irmão das palavras que já sabes um vocábulo para este alarme de vísceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha escrito… E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face» [3].

Julgo que terá surgido Fernando Pessoa e Álvaro de Campos no pensamento de Vergílio Ferreira quando escreveu «nada mais há na vida do que o sentir», uma vez que «sentir tudo de todas as maneiras» é o primeiro verso de A Passagem das Horas e existe o poema: «Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. / Sentir tudo de todas as maneiras. / Sentir tudo excessivamente, / Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas /E toda a realidade é um excesso, uma violência,/Uma alucinação extraordinariamente nítida /Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,/O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas/Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.// […]». 
Também a palavra «pedra» fora trabalhada por Pessoa em «A Nova Poesia Portuguesa» com o seu valor como significante e significado de valor denotativo e conotativo. E, no último verso do poema Pauis, o ferro com a sua dureza obstaculizante restringe o horizonte poético: «Portões vistos longe, através das árvores, tão de ferro!...». E ainda as palavras guardadas na algibeira também podem ser lidas como apontando para Pessoa: o poeta guardador de papéis, primeiro, no bolso e, depois, na arca. 
A tudo isso, acresce ter Pessoa escrito O Livro do Desassossego, podendo «desassossego» ser a palavra oculta pela expressão: «vocábulo para este alarme de vísceras».

A ser assim, julgo que o «irmão das palavras», a quem Vergílio diz odiar, seria Fernando Pessoa, falecido em 1935, logo, a dormir  «tranquilo» e a apontar « a cartilha onde tudo já vinha escrito…».

Este diálogo explícito, ao qual não falta vocativo, mas falta o nome explícito do evocado, parece um bom exemplo de dialogismo do autor mais novo com o autor mais velho, num confronto de obras, para conquistar o espaço de expressão do desassossego de um outro eu: «E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face».
Outubro, Maria José Domingues




[1] Bloom, Harold, A Angústia da Influência, Edições Cotovia, 1991, p.17.
[2] Lourenço, Eduardo, «Vergílio Ferreira e a geração da Utopia», in Estudos sobre Vergílio Ferreira, Temas Portugueses, Helder Godinho, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982, pp.295-306.
[3] Ferreira, Vergílio, Aparição, Bertrand Editora, 1988, pp.9-10.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Carlos de Oliveira vs. Vergílio Ferreira – Uma Abelha na Chuva vs. Aparição




«Vida e morte o que são?» versus ‘Vida e morte o que são para mim?’

Os dois autores escrevem as obras referidas na década de cinquenta do século XX - Uma Abelha na Chuva é publicada em 1953 e Aparição em 1959[1]. Os dois autores, contemporâneos do neorrealismo e do presencismo, percorreram o caminho literário do neorrealismo, sendo que Vergílio Ferreira, após as primeiras obras neorrealistas, criou a corrente literária vergiliana do existencialismo, centrada no eu que se interroga sobre si mesmo e sobre o mundo. Esse eu parte da personagem narrador que, face a si mesmo e ao mundo, tem mais perguntas do que respostas.

Acontece que, em Uma Abelha na Chuva, Carlos de Oliveira toca o existencialismo heideggeriano, através da voz da consciência audível, sobretudo na personagem Álvaro Silvestre, e da questão posta pelo médico, que ecoa na interioridade de Silvestre: «Vida e morte o que são?». Para esta interrogação humana surgem na obra as respostas adequadas às personagens: para os católicos, Deus é a resposta; para o médico apicultor, a morte é o fim da vida, o que não invalida a recordação dessa vida que os humanos transportam; para o neorrealista, a morte pode ter um significado político, no caso, o do fomento da luta de classes. Apesar das respostas diversificadas, a questão continua em pé com a angústia criada pela ameaça mortal.

Ao reler Aparição, imediatamente a seguir a Uma Abelha na Chuva, tive a noção de que a obra vergiliana continuava a problemática vertida na mesma pergunta, acrescida de um «para mim», isto é: Vida e morte o que são para mim.
O romance desenrola-se na busca da resposta reveladora.
Temos um eu/narrador em contexto (o eu-aqui de Heidegger), em busca da «verdade perfeita» - essencial na filosofia heideggeriana - a verdade como revelação do ser, o que pressupõe que o homem se abre ao ser revelado nas coisas existentes. O narrador começa por enumerar «a aparição fantástica das coisas» nos objetos que o rodeiam, depois ele próprio como objeto a seus olhos  - « a presença iluminada de mim a mim próprio». Acontece então a valorização da vida, porque essa é a verdade «que queima» quando se vê «o absurdo da morte», gerador da angústia reveladora do significado autêntico da presença do homem no mundo. Aceite a condição humana, restaura-se «a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo» (p.10).

Braga, 1 de outubro de 2015
Maria José Domingues



[1] Aparição, Vergílio Ferreira, Bertrand Editora, 17ª edição, 1988. As páginas indicadas pertencem a essa edição.