Em A Angústia da Influência,
Harold Bloom escreve que «os poetas fortes fazem a história lendo-se mal uns
aos outros, de modo a desobstruir um espaço de imaginação para si próprios» [1].
Estamos a dissertar sobre dois
escritores portugueses de grande talento. Sabe-se que Vergílio Ferreira combateu
Fernando Pessoa, aliando-se às opiniões de certos neorrealistas e críticos
literários do mesmo pendor. Disso nos dá conta em Conta-Corrente, 2 (pp.25-26).
Eduardo Lourenço debruça-se sobre a questão e afirma que Vergílio Ferreira combateu Pessoa como a um «fraterno inimigo», embora com «virulência imprópria, chocante mesmo», todavia, para além disso, acontece o «encontro», que «não se situa na mesma linha, nem ocupa o mesmo lugar nos respetivos itinerários espirituais». E explica: «o que em Pessoa é visão nuclear, olhar inverso consumidor de substância de tudo aparece em Vergílio Ferreira como passagem, tentação vencida ou suspensa, reposição da experiência humana numa Luz que sem ignorar a Noite a deseja transfigurar». E conclui: «A obra de Arte é justamente o exato lugar da noite humana transfigurada»[2]. No fabrico da obra de Arte se encontram os dois desassossegados autores em tempo diferente.
Eduardo Lourenço debruça-se sobre a questão e afirma que Vergílio Ferreira combateu Pessoa como a um «fraterno inimigo», embora com «virulência imprópria, chocante mesmo», todavia, para além disso, acontece o «encontro», que «não se situa na mesma linha, nem ocupa o mesmo lugar nos respetivos itinerários espirituais». E explica: «o que em Pessoa é visão nuclear, olhar inverso consumidor de substância de tudo aparece em Vergílio Ferreira como passagem, tentação vencida ou suspensa, reposição da experiência humana numa Luz que sem ignorar a Noite a deseja transfigurar». E conclui: «A obra de Arte é justamente o exato lugar da noite humana transfigurada»[2]. No fabrico da obra de Arte se encontram os dois desassossegados autores em tempo diferente.
Tudo isto vem a propósito da
releitura de Aparição e do diálogo que se trava entre o eu do narrador-escritor
e, talvez, Fernando Pessoa. Partindo dessa hipótese, vejamos então de que modo Vergílio Ferreira
em Aparição desobstrui o espaço para a sua imaginação desassossegada, no espaço ocupado pelo desassossegado Pessoa:
«Sinto,
sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma
palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original,
aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o
comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. Eu te
odeio, meu irmão das palavras que já sabes um vocábulo para este alarme de
vísceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha
escrito… E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e
invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se
ergue à nossa face» [3].
Julgo que terá surgido Fernando Pessoa e Álvaro de
Campos no pensamento de Vergílio Ferreira quando escreveu «nada mais há na vida do que o sentir», uma vez que «sentir tudo de todas
as maneiras» é o primeiro verso de A Passagem das Horas e existe o poema: «Afinal, a
melhor maneira de viajar é sentir. / Sentir tudo de todas as maneiras. / Sentir tudo
excessivamente, / Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas /E toda a
realidade é um excesso, uma violência,/Uma alucinação extraordinariamente
nítida /Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,/O centro para onde
tendem as estranhas forças centrífugas/Que são as psiques humanas no seu acordo
de sentidos.// […]».
Também a palavra «pedra» fora trabalhada por Pessoa em «A Nova
Poesia Portuguesa» com o seu valor como significante e significado de valor
denotativo e conotativo. E, no último verso do poema Pauis, o ferro com a sua dureza
obstaculizante restringe o horizonte poético: «Portões vistos longe, através das árvores, tão de ferro!...». E ainda as
palavras guardadas na algibeira também podem ser lidas como apontando para Pessoa:
o poeta guardador de papéis, primeiro, no bolso e, depois, na arca.
A tudo isso,
acresce ter Pessoa escrito O Livro do Desassossego, podendo «desassossego»
ser a palavra oculta pela expressão: «vocábulo para este alarme de vísceras».
A ser assim, julgo que o «irmão das palavras», a quem Vergílio diz
odiar, seria Fernando Pessoa, falecido em 1935, logo, a dormir «tranquilo» e a apontar « a cartilha onde
tudo já vinha escrito…».
Este diálogo explícito, ao qual não falta vocativo,
mas falta o nome explícito do evocado, parece um bom exemplo de dialogismo do autor mais novo com o autor mais velho, num
confronto de obras, para conquistar o espaço de expressão do desassossego de um
outro eu: «E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz
e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando
se ergue à nossa face».
Outubro, Maria José Domingues
[1]
Bloom, Harold, A Angústia da Influência, Edições Cotovia, 1991, p.17.
[2]
Lourenço, Eduardo, «Vergílio Ferreira e a geração da Utopia», in Estudos
sobre Vergílio Ferreira, Temas Portugueses, Helder Godinho, Imprensa
Nacional - Casa da Moeda, 1982, pp.295-306.
[3]
Ferreira, Vergílio, Aparição, Bertrand Editora, 1988, pp.9-10.