domingo, 7 de junho de 2015

O Principezinho – génese




O Principezinho – génese

"Pour moi, voler ou écrire, c'est tout un", affirme Saint-Exupéry dans un entretien de 1939.

Releio O Principezinho, leio artigos sobre a obra e concluo o que todos os leitores sabem: a obra está aberta a muitas interpretações, razão pela qual terá sido muito lida e até tenha sido obra escolar obrigatória. Para que uma obra seja tão produtiva, ela tem que permitir vários graus de leitura, de acordo com o leitor – a idade, a sensibilidade e o conhecimento. Por tudo isso, procuro, por entre o emaranhado de informações, a minha leitura, tendo em conta a obra em si, o contexto histórico-biográfico de Antoine de Saint-Exupéry e a literatura francesa.
Se o primeiro grau de leitura nos reenvia para o conto mais ou menos infantil, mais ou menos moralista, o segundo grau encontra em cada personagem, em cada objeto, um valor polissémico. E é nessa polissemia, própria da obra de arte imortal, a abrir pelo leitor, que nos podemos perder na riqueza da interpretação - para cada leitor, sua leitura. Por isso, para além dos valores humanistas da proteção à infância e da importância a dar à criança e à sua expressão, do valor da amizade e do amor, temos a sensação de que fica algo por desvendar. E então a busca é infindável até à sensação de esvaziamento que obriga a parar e a registar o que se aprendeu para não esquecer.

Contexto
Sabemos que o autor, apelidado de «rei sol» por uma das irmãs, ficou órfão de pai aos quatro anos e foi educado e instruído em colégios até ao exame final do ensino secundário, então com 17 anos. Estamos em 1917, ano em que faleceu o seu irmão com 15 anos. Frequentou Belas-Artes até entrar para o serviço militar na aviação. Em 1922, obteve o seu brevet, como aluno oficial da aviação francesa. Escolheu ser aviador e escritor em simbiose. Casou com Consuelo Sandoval, em 1931. Viveu entre 1900 e 1944, em tempos conturbados por duas guerras mundiais, morrendo a 30 de Julho de 1944, dentro do seu avião, abatido por um atirador alemão – assunto esclarecido apenas no século XXI.
A sua posição política foi considerada controversa pelos dois contendores: Pétain e De Gaulle. Nesse universo maniqueísta, ele não tinha lugar. O seu patriotismo não estava em causa, mas ele temia a guerra civil entre franceses e apelava à união. Não confiava em De Gaulle para salvar a França, tal como De Gaulle não confiava nele, nem tão pouco os homens do Marechal Pétain, com quem ele não queria nada, desde que Pierre Laval entrara para o governo.
Impedido de voar pela idade e não se considerando político, exilou-se nos Estados Unidos, em 1940, em consequência do Armistício franco-alemão de 22 de Junho de 1940, com a intenção de convencer os americanos a entrar na guerra, em defesa da Europa contra os totalitarismos.

«Qui suis-je si je ne participe pas?» - perguntava ele.

De facto, a participação diplomática não estava a acontecer, apesar de Pilote de Guerre (1942) ter tido essa intenção. Desejoso de ação, tentava a via profissional como aviador, permissão que ia requerendo com insistência e que ia vendo indeferida pela resistência gaulista até Abril de 1943 – data em que foi admitido apenas para missões de reconhecimento.

A génese da obra

É no compasso de espera, uma época depressiva, em Nova Iorque, após a publicação de Pilote de Guerre, que vai acontecer O Principezinho (1942), também uma lufada de ar fresco para o próprio autor. Saint-Exupéry, enquanto almoçava com o seu editor e esposa, desenhava no guardanapo a figura de um rapazinho loiro de cabeleira despenteada, que teimava em sair das suas mãos ao longo dos anos em desenhos variados. Acontece que, naquele momento, o editor presta especial atenção ao desenho e sugere um conto infantil com aquela personagem. Saint-Exupéry estava preparado para escrever esse conto, com o material recolhido ao longo da sua vida variada, acompanhada de muita reflexão, como se pode ler em Terre Des Hommes  de 1939.Com efeito, há nessa obra a descrição de um vagão de polacos pobres, repatriados de França, no qual se instala o narrador, frente a um casal miserável com o filho adormecido entre eles, um belo rapazinho semelhante «a um fruto dourado, pleno de encanto e de graça».

«Aqui está um rosto de músico, um Mozart criança, uma bela promessa de vida. Os principezinhos das histórias não eram muito diferentes dele: protegido, bem rodeado e cultivado, poderia chegar muito longe! Quando nasce por mutação nos jardins uma rosa nova, todos os jardineiros se comovem. Isola-se a rosa, cultiva-se a rosa, criam-se condições para o seu total esplendor. Mas não existe jardineiro para os homens. Mozart criança será marcado como os outros pela máquina de prensagem. […] Mozart está condenado».

E acrescenta: «o que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro», isto é, o narrador pensa no que existe de particular em cada ser humano e que vai desaparecer com a miséria e a guerra - «Mozart assassinado» - não podendo, assim, desabrochar.
Verifica-se pela leitura do texto de 39 que o principezinho loiro e a rosa especial tinham acabado de nascer no imaginário do autor com a preocupação humanística da educação e proteção de todas as crianças, para que desenvolvam os seus talentos e embelezem e enriqueçam o planeta.
Também a raposa do deserto («le renard-fennech»), mais pequena do que um gato e de grandes orelhas, surge em Terre des Hommes, quando o autor  conta como a conheceu e cativou no deserto, onde aterrara com uma avaria.

Pode concluir-se que o autor se inspira na sua experiência de vida em reflexão para a criação da obra literária e Le Petit Prince não é exceção. É evidente que o autor não se inspira apenas nisso, ele possui um património cultural e literário, porque os homens têm raízes que transportam dentro de si, ao contrário do que diz a ingénua flor de três pétalas; «-Os homens? […] Não têm raízes, o que lhes cria problemas».

Junho 2015 - MªJoséDomingues

sábado, 6 de junho de 2015

Le Petit Prince – Le Roman de Renard – Le Roman de la Rose



Le Petit Prince – Le Roman de Renard – Le Roman de la Rose
O Principezinho – O Romance da Raposa – O Romance da Rosa

Viajando por entre os valores polissémicos das personagens de O Principezinho, não posso deixar de associar as personagens Raposa e Rosa às raízes literárias mais antigas da Literatura francesa: Le Roman de Renard do século XII e Le Roman de la Rose do século XIII. Certamente que Saint-Exupéry os teve na devida conta.
1. Le Roman de Renard, inserido na literatura satírica, tem origem nos contos orais da cultura popular e nas fábulas de Fedro e Esopo, adotando como personagem principal a raposa, com a intenção de provar o triunfo do espírito e da astúcia sobre o lobo, representante da força brutal - o que pode ser interpretado como a vingança da burguesia e do povo esmagados pela nobreza. A sequência deste subgénero literário, nos séculos XIII e XIV, é a alegoria que ataca a hipocrisia e o poderio do dinheiro.
No caso de O Principezinho, também é possível considerar a obra uma alegoria, isto é, uma narrativa que joga com o sentido duplo, figurado e oculto. E possível é  integrá-la na sátira pela crítica  às pessoas crescidas, aos embondeiros e à organização social dos asteróides, que parecem representar criticamente a falta de imaginação, o individualismo exacerbado, o alastramento da guerra e o trabalho em série, situações em que o homem apenas se vê a si próprio, ficando cego para o outro e para diferentes perspetivas de encarar a vida e o mundo. 
É de salientar que a personagem raposa, na obra O Principezinho, traz consigo a sabedoria de raízes profundas da amizade e do amor, como sentimentos capazes de quebrar a monotonia da vida. E é ela que explica ao Principezinho e aos leitores o valor de «criar laços» e a receita para «cativar»: a paciência, a aproximação lenta, a espera do momento de encontro, a criação de ritual e, depois de «criar laços», a associação de imagens a caraterísticas do ser amado.
A força bruta do lobo poderia ver-se na jiboia, capaz de esmagar qualquer ser por mais forte que seja, tal como a guerra engole as nações e os seus povos. 
Certamente a inteligência e a astúcia próprias da raposa  seriam indispensáveis para vencer a guerra, à semelhança da vitória da raposa sobre o lobo em Le Roman de Renard.
Nesse romance medieval existe mais uma personagem comum a O Principezinho: «le mouton», traduzido por “ovelha”. Se o autor escolhesse a personagem ovelha teria escrito “brebis” e não “mouton”. Acontece que, em Le Roman de Renard, Belin designa a personagem “mouton” que significa carneiro, vencedor do lobo pela força da marrada. Sabemos pela leitura da obra que o Principezinho queria um “mouton” sem chifres, isto é, não queria «un bélier». Certamente por isso se tenha optado por  ovelha, como a melhor tradução. Contudo o «mouton» do O Principezinho pode não ser tão pacífico como uma ovelha. Teme-se que esse animal coma a flor e tudo o que ela representa. Dentro da caixa será inofensivo, açaimado e atado a um poste, dificilmente comerá todos os rebentos dos embondeiros, nomeadamente aqueles que infestarão o canteiro da rosa. No momento em que o Principezinho levasse para o seu planeta um estranho aprisionado –“le mouton” o seu planeta jamais seria o mesmo. Em consequência, acabaria a liberdade natural do existir e aumentaria a preocupação de viver. Logo, o Principezinho transformar-se-ia numa pessoa crescida.
Admitindo que os três embondeiros possam ser lidos como as três forças bélicas em litígio na Europa (Países democráticos, países nazis e URSS), pergunta-se: que poderia representar «le mouton»? Quem  poderia destruir as sementes de guerra? Quem poderia ser o adjuvante do jardineiro protetor da Rosa? Talvez os Estados Unidos da América possam ser a resposta. Tendo presente o papel de Saint-Exupéry de convencer aquele país a salvar a França, poder-se-ia considerar essa hipótese. Importante é salientar o papel das restrições: a caixa, o açaimo  e aquilo que o Principezinho não levara: a correia de couro. O animal não poderia andar à solta, pois poderia comer a Rosa; ele apenas deveria comer os rebentos dos embondeiros. E é aqui que o leitor pode tomar consciência do desdobramento do narrador em pessoa crescida e em criança, tomando a criança pela ingenuidade de acreditar na salvação da Europa pelos USA. É nesse ponto que surge a dúvida ao narrador: «le mouton» comerá ou não comerá a Rosa?

2. Le Roman de la Rose (século XIII) insere-se na poesia didática da Idade Média, pelo facto de ter a intenção de ensinar literariamente a arte de amar. O Romance da Rosa é composto por duas partes. O código do amor cortês, poetado por Guillaume de Lorris - «Voici le Roman de la Rose / Oú l’art d’Amour est tout enclos» - constitui a primeira parte. O amor cortês é tratado em poemas alegóricos, nos quais a rosa representa a mulher amada. Todavia o caminho é longo e difícil para a alcançar, pois é preciso agir com delicadeza, requinte e poesia, tal como a raposa ensina ao principezinho.
A segunda parte da obra é redigida por um clérigo latinista e misógino, Jean de Meung, crítico social, para quem a nobreza é apenas a das qualidades morais e intelectuais. Ele aborda assuntos variados (sátira do tempo, filosofia da natureza, temas morais, sociais ou políticos) e isso pode reenviar o leitor para os seis asteróides de O Principezinho e para a crítica social que encerram.
O tópico poético da rosa continuou a ser tratado na poesia preciosa como símbolo da mulher amada, da beleza efémera e do amor e ainda da fragilidade da vida humana.
Ronsard, o príncipe dos poetas francês do século XVI, trata,  em vários poemas,o tópico da rosa, imagem simbólica, que traduz em antítese a experiência paradoxal do tempo: por um lado, o aprofundamento vertical do momento presente em fuga à coação do tempo; por outro, o sentido da passagem do tempo e da finitude da experiência amorosa. Entre a contradição e a harmonia, desenrola-se o amor de que a rosa, de beleza efémera e com espinhos, é o símbolo. Certamente, por isso, o Principezinho fala primeiro dos espinhos e, depois, da sua frágil e bela rosa, mas também vaidosa e enganadora.
Pode ler-se em Ronsard (Les Amours) e em Saint Exupéry (Le Petit Prince) a harmonização de forças contraditórias, unindo a experiência poética e a experiência sentimental, através de um impulso vital, numa ânsia de plenitude «que faz convergir em momentos privilegiados todas as tensões do universo». Esse processo liga-se à vivência do tempo que associa ao momento presente o sentimento da intemporalidade. E a imagem da rosa condensa todo esse processo transformador das referidas obras literárias.
No contexto político, a rosa do Principezinho poderia ser interpretada como a França de       Saint-Exupéry, centro das suas preocupações, no momento em que escrevia a obra em questão. Outras interpretações têm sido dadas, por exemplo, a rosa seria  sua mãe ou sua esposa Consuelo.
Penso que, de uma forma abrangente, a Rosa seria a essência espiritual da cultura e civilização europeias, que o autor centra na França, o país da Rosa em poesia lírica de amor. Exilado, pretende salvá-la, introduzindo um estranho e possível salvador.

Junho, Maria José Domingues