segunda-feira, 28 de abril de 2014

OS MEMORÁVEIS DE LÍDIA JORGE E O TESTAMENTO DO POETA MAGREBINO


Tahar Djaout  ou Mou'in Bsissou?
"Si tu parles, tu meurs ; si tu te tais, tu meurs. Alors, parle et meurs !"

Leio a excelente obra de Lídia Jorge com o google à mão e fico confusa acerca da autoria do intitulado «testamento do poeta magrebino», pendurado numa nesga da parede do escritório da personagem António Machado, jornalista, que transportava consigo «o excesso de testemunho e de autoria».
Do que indaguei, concluí que o dito testamento fora atribuído ao poeta magrebino Tahar Djaout  (1954-1993), um dos primeiros intelectuais vítimas do terrorismo algeriano, na década de 90. Porém, não tendo sido encontrado o poema na sua obra, veio a ser atribuído ao palestiniano Mou'in Bsissou (1926-1984). Leia-se então, a junção dos dois, na transcrição, em http://www.ziane-online.com/textes/litterature/ecrivains_algeriens/tahar_djaout/13e_anniversaire.htm :

«Victime, le 26 mai 1993, d’un attentat terroriste au pied du bâtiment où il réside à Baïnem, Tahar Djaout y succombera après une semaine de coma le 2 juin. C’était trois semaines avant l’assassinat d’un autre intellectuel, Mahfoud Boucebsi- qui faisait partie d’un groupe créé pour demander la vérité sur l’attentat commis contre Djaout- et un mois avant l’assassinat du président du HCE, Mohamed Boudiaf. On ne sait si un jour l’histoire pourra se pencher sur cette période noire de l’Algérie qui a vu la fine fleur du pays décapitée au nom de l’idéologie intégriste. Medjoubi, Alloula, Belkhenchir, Chergou, Mekbel, Boukhobza, Liabès et tant d’autres cadres et intellectuels ont subi le sort macabre décidé par une secte d’assassins. Chaque semaine, un nom nouveau s’ajoutait au martyrologe. A tous, il est reproché la libre pensée, la franchise, l’honnêteté et l’engagement dans la société. Fallait-il se taire ou continuer à parler, à écrire et à se battre pour faire valoir la raison, l’intelligence et la vie ? Djaout n’y va pas par quatre chemins pour nous appeler à mourir dans la dignité : "Si tu parles, tu meurs ; si tu te tais, tu meurs. Alors, parle et meurs !". Cette citation du poète palestinien Mouin Bsissou deviendra une devise que même les tagueurs de Kabylie reproduiront sur les murs lors des journées sanglantes de la révolte citoyenne en 2001.»


O testamento do poeta na obra de Lídia Jorge está traduzido para português, «para que não se perdesse um átomo do seu sentido» com o acrescento à mão de «E nós também»:

Silêncio é morte
e tu, se te calas
morres, e nós também
e se falas
morres, e nós também
então diz e morre. E nós também.

Epígrafe excelente para jornalistas, escritores e para todos nós. Obrigada, Lídia, pelo testamento e pela sua obra.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Romeirinhos



Romeirinhos a S. Bentinho de Trás do Hospital de S. Marcos de Braga

Maria Ondina Braga, no texto «Como A Fénix», em Vidas Vencidas, escreve sobre os romeirinhos, que, à quinta-feira, se dirigiam para a capelinha do santo, atrás do Hospital de S. Marcos. A Tia Glória não resistia e acompanhava-os, pois era ele o advogado contra males ruins e verrugas. E «a capelinha à cunha, o gradão escancarado, velinhas a arder».
Na minha infância também pertenci a um grupo de romeirinhos: nove meninas, cada uma com um raminho de flores. Os adultos acompanhantes cantavam quadras adequadas a cada momento da peregrinação. Apenas me lembrava da quadra das «belinhas a arder». Pedi ajuda a uma amiga, que recolheu as quadras seguintes em S. Mamede de Este.

Ó meu S. Bentinho
Estamos a sair
Abrei-nos a porta
Para nos ouvir

Para nos ouvir
Ainda mais também
Ó meu S. Bentinho
Para sempre amen

Para sempre amen
Como a neve pura
Ó Salve Rainha
Ó vida doçura

Ó meu S. Bentinho
De trás do hospital
Tu deste saúde
A quem estava mal

A quem estava mal
E aos outros também
Ó meu S. Bentinho
Para sempre amen

Ó meu S. Bentinho
Estrela da manhã (manhão)
Vós deste saúde
À nossa irmã (irmão)

À nossa irmã (irmão)
Ainda mais também
Ó meu S. Bentinho
Para sempre amen
                          
Ó meu S. Bentinho
Que estais no altar
Abrei-nos a porta
Queremos entrar

Ó meu S. Bentinho
A capela cheira
A cravo a rosa
A flor de laranjeira

Ó meu S. Bentinho
Velinhas a arder
Se elas se apagarem
Tornam-se a acender

Acendiam-se as velas, ofereciam-se as flores e seguia-se um momento de oração.



quarta-feira, 9 de abril de 2014

SÓ de António Nobre em Vidas Vencidas de Maria Ondina Braga



O de António Nobre em Vidas Vencidas de Maria Ondina Braga
Entre António Nobre e Maria Ondina Braga, que pode haver de comum? - perguntar-se-á. Apenas falaremos daquilo que os une. Os dois escritores enveredaram pela escrita rememorativa do eu. Essa escolha cria problemas ao próprio eu: eu de autor, eu-lírico, eu-narrador, eu-personagem. Ao mesmo tempo, inaugura um discurso de devassa daquilo que o eu guarda na memória. Por isso, há que selecionar e transfigurar o real memorizado.
Creio que, para Maria Ondina, António Nobre foi um ótimo companheiro, na sua solidão e no preenchimento dela pela construção dos textos que se transformaram em obra.
As epígrafes do introduzem textos de Maria Ondina em Vidas Vencidas.
O texto «Luiza», um texto dramático, tem como epígrafe uma estrofe do poema «António»:
A Prima doidinha por montes andava,[1]
À Lua, em vigília!
Olhai-me, Doutores! há doidos, há lava,
Na minha família...
Esta epígrafe dá força psicológica, para que se escreva a história de Luiza, pois em todas as famílias houve e há situações constrangedoras, mas que precisam de ser contadas. No caso da loucura da tia Luiza, criada pela avó, bisavó da narradora, estamos perante a ditadura familiar de uma mulher mais velha e poderosa sobre uma outra mais nova e frágil. Situação geracional muito frequente, mesmo entre mães e filhas. O cerne da situação narrada aponta para uma realidade social frequente até, pelo menos, meados do século XX. Refiro-me à colocação de filhos em casa de avós, de padrinhos, de tios, de famílias abastadas, por casais com muitos filhos e com dificuldades económicas. Esta deslocação do seio familiar revela-se dramática no caso da personagem Luiza e tem como consequência posterior a sua loucura.

No texto «Rua de S. Vicente», a narradora descreve essa rua a caminho do liceu e a caminho do cemitério, recordando-a, no quarto interior da sua memória, como «uma rua soturna» de «casas funerárias, enterros, homens e mulheres de preto». Maria Ondina escolheu para epígrafe os seguintes versos de António Nobre, da fala da Esperança, no poema «À Toa»:
Morri, irmãos! Mas lá ficaram minhas vestes,
No vosso mundo: dei-as dadas aos ciprestes.[2]
Com esta epígrafe, a tónica é colocada naquilo que se deixa, depois da vida vencida. As vestes de que fala António Nobre seriam os seus versos, que ele considerou os mais tristes que se fizeram em Portugal. Também Maria Ondina escreve melancolicamente, por vezes, com a tristeza que flui pela sua rua de S. Vicente com três paragens: a do liceu, de que não guarda boas recordações; a do cemitério, no Dia dos Fiéis Defuntos, menos triste, com «passeata pelo campo-santo» a ver as fotografias e a ler os epitáfios; a da Doçaria de S. Vicente, em prova de vida, saboreando os lêvedos.
O percurso da casa da Avenida Central até ao cemitério talvez possa ser considerado o símbolo da viagem dos seres humanos do nascimento até à morte. Pelo caminho, encontra-se de tudo, os professores, as colegas, os enlutados, a louca, a enfarruscada, as lojas variadas, desde a farmácia à funerária. Mas prevalece a morte que sempre vence a vida.


[1] Poema «António», in Só, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, p.89.
[2] Poema «À Toa», p. 163.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Santo António e o responso, em Vidas Vencidas de Maria Ondina Braga

Responsos


O texto «Atrás de uma montanha há sempre outra» (Vidas Vencidas, Maria Ondina Braga)  começa com a grande devoção do pai da narradora a Santo António, festejado, no dia 13 de Junho, com um trono em forma de gruta, velas de cera, cravos e manjericão. Sua mãe também trouxera um, «de cruz em punho e o Menino sentado no livro aberto, o que significava boda segura, satisfação». Porém, o grande destaque vai para o poder de «fazer aparecer objectos perdidos e evitar desgraças que se adivinhavam, bastava rezar-se-lhe o responso:
Se milagres desejais
 Recorrei a Santo António
 Vereis fugir o demónio
 e as tentações infernais».  
E mais adiante, cita o pedido dos pescadores: 
«no auge do furacão
cede o mar embravecido...».
Os versos citados pela autora pertencem ao Ofício Rítmico em honra de Santo Antónia, datado de 1233, e cantado ainda hoje. Iniciado pela quadra que Maria Ondina transcreve, continua assim:

«Recupera-se o perdido./ Rompe-se a dura prisão,/ e no auge do furacão/ cede o mar embravecido./
Pela sua intercessão,/ foge a peste, o erro, a morte,/ O fraco torna-se forte, /e torna-se o enfermo são./
Recupera-se o perdido. /Rompe-se a dura prisão,/ e no auge do furacão/ cede o mar e mbravecido./
Todos os males humanos /se moderam, se retiram,/
Digam-no aqueles que o viram, /e digam-no os paduanos./
Recupera-se o perdido. /Rompe-se a dura prisão,/ e no auge do furacão / cede o mar embravecido./
Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
Recupera-se o perdido./ Rompe-se a dura prisão,/ e no auge do furacão /cede o mar embravecido./
Rogai por nós, bem-aventurado António / Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.»

Pelos vistos, na casa da narradora, em Braga, o mais usual, perante a perda da chave, dos óculos, da caixa de pastilhas, era recorrer a São Tomaz de Villanueva, numa reza rápida:
 «São Tomaz de Villanueva 
Foste bispo e arcebispo
 Permiti que me apareça (explicava-se)
 Pelas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo»
E tudo aparecia. Contudo, ela não conhecia o santo, até ao posterior encontro da imagem no altar-mor da igreja do Pópulo.
 Lendo Vidas Vencidas, agora, em 2014, e conversando sobre o responso, uma amiga disse-me que conhecia uma senhora de Adaúfe, Braga, que fazia aparecer as coisas perdidas através de responso. Pedi-lhe que mo arranjasse. Trouxe-mo hoje. E qual não foi o meu espanto ao verificar que em vez de S. Tomás de Villanueva se tinha colocado Santo António de Lisboa, embora este não tenha sido nem bispo nem arcebispo. Reza assim:
Santo António de Lisboa
Foste bispo e arcebispo
Pelo poder de Jesus Cristo
Ajudai-me a aparecer isto

Pelo poder de Deus
E da Virgem Maria
Rezo um pai-nosso
E uma ave-maria

Na minha infância, quando em minha casa se perdia algo de valioso, minha mãe mandava-me a casa da Teresinha, para que ela dissesse o responso a Santo António. Muito satisfeita, eu corria para casa da nossa amiga a fazer-lhe o pedido. Ela entrevistava-me, pedia pormenores do sucedido e do objeto em causa. Muito séria e em espírito de oração, como quem falava com o santo, repetia três vezes o seguinte texto, se não se enganasse, o objeto apareceria:
Santo António se vestiu e calçou.
Pelo caminho do Senhor andou.
Encontrou o Senhor,
O Senhor lhe perguntou:
– Ó António, onde vais?
– Ó Senhor, eu vou contigo.
– Tu comigo não irás,
Nesta terra ficarás,
Todas as coisas perdidas,
Ó António, encontrarás.

Não tenho a certeza se era esta a terminação, mas o certo é que, se não houvesse enganos no responso, a Teresinha diria onde ir buscar o objeto, mesmo sem sair de sua casa. Maravilhas da infância!
Bem diferente dos responsos apresentados, é o da memória da minha amiga Manuela, recitado por sua família de origem lisboeta:
O diabo esteja de joelhos a rezar,
Diante do Santíssimo Sacramento do altar,
Enquanto o objeto se não achar.

Claro que, em vez de objeto, se dirá o nome dele.