Os Azevedos da
Portela das Cabras
Aquilino Ribeiro, activista republicano, apresenta, na «crónica
romanceada» da Casa Grande de Romarigães, uma paródia de linhagens. Na primeira
parte, aparecem duas linhagens, em confronto: de um lado, os Cunha de
Romarigães, descendentes do licenciado abade Gonçalo da Cunha e, do outro, a
família Azevedo da Portela das Cabras, que se diz descender do rei merovíngio
Quilderico, passando por Lopo Dias de Azevedo, armado cavaleiro pelo próprio
Mestre de Avis, na batalha de Aljubarrota.
Depois da fusão, em conflito, das
duas linhagens, pelo casamento de Luís de Antas da Cunha com Joana de Azevedo,
a narrativa centra-se nos descendentes desse casal, sediados na Casa Grande de Romarigães,
passando por períodos áureos e decadentes até à ruína, da qual se recupera com a
mudança da posse para a bisneta do boticário Bento da Ponte, casada com
Hilário Barrelas (uma máscara onomástica hilariante para Aquilino?), sem qualquer vislumbre de nobreza.
Assim foi e assim é hoje, na
roda da posse e no avanço democrático: da nobreza para a burguesia ou para o povo. Assim foi com a
posse da Casa Grande de Romarigães, com a posse de algumas das casas dos Azevedos da
Portela das Cabras ou com a Quinta de Azevedo de Lama (Barcelos), agora, na
posse da empresa Sogrape.
É de considerar que, provavelmente, certos dados biográficos do autor poderiam
ter influenciado a construção irónica da obra-prima. Certo é que Aquilino é
filho do padre Joaquim Francisco Ribeiro e casado, em segundas núpcias, com
Jerónima Dantas Machado (a menina de olhos grandes, castanhos e leais»?),possuidora por herança da casa grande de
Romarigães, onde o casal habitou, depois do restauro, durante o qual Aquilino
diz ter encontrado «uma rima de papéis velhos» e, nela, um manuscrito da
autoria de Manuel Afonso, de Venade, intitulado «Vida de D. Luís António de
Antas e Meneses, sargento-mor de Milícias e procurador às Cortes de 1828». Este
manuscrito, as «Cartas de dois amantes verdadeiros» e ainda o que mais
houvesse de interesse para a obra nessa rima de papéis velhos poderiam ter
sido fonte para a crónica romanceada.
Insere-se
na narrativa, nos capítulos III e IV, a história nacional da guerra da
Restauração com a invasão da Galiza. Entre os invasores ia a fidalguia minhota,
da qual fazia parte Luís de Antas da Cunha da Casa Grande de Romarigães. A
nobreza do Alto Minho e da Galiza, aparentada, entendia-se; por isso, tudo
decorreu entre hóspedes e anfitriões. Como entretenimento, os jovens oficiais
pescavam ou visitavam educandas e noviças às grades dos conventos galegos. É
nesse contexto que surge a personagem Joana de Azevedo, que «pertencia à
casa de Azevedo, de Portela das Cabras, termo de Barcelos, filha de Simão de
Vilas Boas, senhor do morgadio[1],
e de sua primeira mulher, D. Ana de Barros Rego». Era prima em terceiro grau de
Luís Antas da Cunha, que decidiu ir ao convento oferecer-lhe os seus préstimos.
Esse encontro foi o primeiro de muitos, uma vez que caíram de amores. Porém,
ela fora destinada pela família e com seu consentimento à vida religiosa, para
que o morgadio ficasse incólume para seu irmão, Gualter de Vila Boas, filho do
segundo casamento de seu pai - «sacrificando-se, era um preito que rendia à
fidalguia dos Azevedos». Preparava-se, então, para os votos, quando surgiu o
primo a transtornar os planos familiares.
A
ferroada republicana é aplicada à genealogia da família Azevedo pela voz do
narrador, a propósito da compreensão de Luís da Cunha pelo drama do «holocausto»
da prima, sacrificada «à vesânia senhorial duma família, que se orgulhava de
remontar a Quilderico por um filho engendrado atrás da porta». Perguntar-se-á
quem foi Quilderico e qual a sua importância. Quilderico ou Childerico I (filho
de Meroveu), Childerico II e Childerico III foram reis da mais antiga dinastia franca,
a dinastia merovíngia (séc. V a VIII). Os reis merovíngios consideravam-se e eram considerados
descendentes de um filho de Jesus Cristo com Maria Madalena. Sabe-se que a
busca de “heróis” fundadores de linhagens foi uma constante desde os primórdios
das monarquias ocidentais. Esses “heróis” poderiam ser figuras religiosas,
mitológicas, literárias ou históricas. Sabe-se que algumas famílias da nobreza
portuguesa pretenderam descender dos merovíngios. É uma pretensão estranha, por
contrária à política do Vaticano, renegadora de Maria Madalena e da sua relação
com Cristo. Mas onde terá Aquilino recolhido essa informação genealógica dos
Azevedos? À «rima de papéis velhos» ou à imaginação pícara?
Depois
das divagações genealógicas, regressemos à narrativa dos amores de Luís da
Cunha com Joana de Azevedo. Entre os dois primos, sucede o enamoramento, a
paixão e a fuga estrondosa, provocada pelos sentimentos do casal, acrescidos da
vontade expressa de Joana: «Porque me não leva daqui, primo?» (p.60). A fuga
combinada complica-se por falta da chave no lugar habitual, segue-se o arrombamento
da porta do convento e a travessia em bote do rio Minho, entre a vida e a
morte, com promessa de boa capela à Senhora do Amparo. Chegados à Casa Grande,
casaram de imediato, perante a surpresa da família do noivo e sem participação
à família da noiva, situação geradora de constrangimento e de
conflito.
A narrativa continua com os descendentes de Joana Azevedo e Luís de Antas da Cunha, possuidores da Casa Grande de Romarigães, com fases de sucesso e insucesso, até à perda total da propriedade.
O
capítulo IV termina com o casamento apressado, na capela da Senhora do Amparo
da Casa Grande de Romarigães, realizado pelo padre-mestre, Reverendo Sebastião
Mendrugo, que «incorria na pena de anátema», por se substituir ao pároco e por
não ter a licença eclesiástica para o casamento – desobediências às imposições
do Concílio de Trento, capazes de tornarem o casamento nulo, se contestado.
Acresce à problemática eclesiástica o crime de rapto de Joana de Azevedo de um
convento de La Guardia.
(Saliente-se
a importância do padre Sebastião Mendrugo como o informador de dados para esta
parte da narrativa, uma vez que ele é apontado por Aquilino, na introdução à
obra, como autor do caderno, datado de 1680, com o título «Livro que há-de
servir ao assentamento das coisas notáveis que assucederam na Casa Grande de
Romarigães, também chamada Quinta de Nossa Senhora do Emparo».)
No
que respeita à linhagem da família Azevedo, o capítulo V completa o anterior.
Nele se apresenta a contenda, entre a família de Luís de Antas da Cunha e a
família de Joana de Azevedo da Portela das Cabras, em consequência do referido casamento.
Na
primeira parte, assiste-se à diligência diplomática de Domingos da Cunha, o pai
de Luís, que, ciente da gravidade do problema, escolheu Florêncio da Cunha
Beça, fidalgo da Ribeira do Cávado, destro em etiqueta e bom conversador, para
embaixador da causa junto do pai de Joana, «Simão Vilas Boas e Azevedo, senhor da Portela das Cabras», de quem ainda era primo (p.73).
Queixava-se
Florêncio de os seus familiares terem sido «esbulhados pelo primeiro morgado, Lopo Dias de Azevedo», de senhorios, a
pretexto «vero ou falso», de que, a soldo de Castela, seu tetravô pretendera
matar o Mestre de Avis. Certo é que Lopo
Dias de Azevedo tinha sido muito próximo do Mestre de Avis, uma vez que
fora por ele armado cavaleiro, imediatamente antes da batalha de Aljubarrota.
Na
posse dos referidos conhecimentos, o leitor acompanha Florêncio Beça, que, com
«grande estadão» e significativos presentes, chegou à casa «do senhor da
Portela das Cabras». Este atendeu «o primo» com «engulho», pois a notícia do
casamento já tinha chegado e fora recebida em pé de guerra pela ofensa-crime
cometida. A descrição de Simão de Azevedo revela a antipatia do narrador e de Florêncio
Beça. O discurso proferido pelo pai de Joana começa por colocar a tónica nas
origens paternas do noivo, Luís de Antas da Cunha, nomeadamente, nos avós, o
abade Gonçalo da Cunha e a «manceba» Maria Roriga, para concluir não poder
admitir na «linhagem gente de tal costado». Certamente esta atoarda apresenta a
questão aquiliniana do seu nascimento e vai alicerçar o discurso narrativo de
Florêncio Beça, em defesa da progénie clerical, citando o caso do «grande Dr.
Francisco de Sá de Miranda, ali da vizinha Quinta da Tapada» e do prezado Bento
de Azevedo, filho do Padre Sebastião de Azevedo, abade de Galegos, e faz o rol
de Azevedos, assim, originários (pp.76-77). Acrescenta algo de muito curioso na
bastardia: o que fazia a fidalguia em Portugal era o varão, «olhava-se para
quem era o pai»; quanto à mãe «basta que seja formosa e honesta, vaso de
eleição na pessoa e não no sangue».
A
defesa da progénie clerical, tão cara ao autor, com «o grande Dr. Francisco de
Sá de Miranda» à cabeça, poderia ser considerada uma motivação para a
importância discursiva deste episódio.
Todavia,
Simão de Azevedo não se deixa convencer e declara que, na sua prole, manda ele
e que Joana «está riscada do livro dos Azevedos», acrescentando aquilo que vai
gerar consternação no emissário: «a justiça o confirmará, se Deus quiser». E
informa que a queixa transitou para a mesa da Consciência e que o Tribunal do
Santo Ofício de Coimbra decidirá, uma vez que a Inquisição de Espanha está a
organizar o processo. E mais declara que «os Azevedos e Vilas Boas só ficarão
limpos quando os dois [Luís e Joana] subirem de sambenito e carocha na cabeça,
o patíbulo da Praça da Lã». Em defesa da tese do pai de Joana, juntam-se o
meio-irmão e a madrasta, tendo esta acrescentado que, naquela família, só
faltava um santinho, pois já havia «navegadores, poetas, generais, um bispo, um
trinchante, até um inquisidor». O papel de santa estava destinado a Joana, que
o aceitara e abraçara de livre vontade.
(Saliente-se
o “estilo heroi-cómico” da última parte do diálogo, nas falas de dona
Floribela, a madrasta de Joana.)
Florêncio
Beça viu recusada a sua missão pacificadora e partiu sem delongas com a noção
de que o caso era insolúvel pela via diplomática e muito difícil de resolver
por outra via.
A
narrativa salta para Romarigães onde encontramos Domingos da Cunha nos preparativos
da «sege que em hora iludida destinara a brilhar na capital de Espanha», a fim
de viajar para Lisboa em busca da solução para o grave problema familiar. A
viagem é interrompida, ainda antes de Barcelos, por um homem que indica o
caminho para Braga, de modo a passarem pela Portela das Cabras, o que evidencia
o conhecimento do autor desse itinerário, quando escreve «se querem marchar
pelo seguro e é certo que vão para o Sul, metam a Vila Verde pelo Rio Mau» e,
mais adiante, «o melhor caminho é por Nevogilde» - de facto esta é a alternativa, ainda hoje, para
quem não quiser seguir na estrada de Ponte de Lima, Corvos, Braga. Atravessavam
terras de Simão de Vilas Boas e Azevedo e por homens dele foram interrompidos
na viagem e atacados, saindo vencedores os homens de Domingos da Cunha, que
comenta: «Mas de que raça ele é, este Simão de Vilas Boas e Azevedo, neto de
Quilderico!» (p.87).
Em
Lisboa, Simão de Azevedo tinha grandes
conhecimentos, «gente toda ela parcial do infante e da rainha», mas Domingos da
Cunha tinha por certo Castelo Melhor e o Bisconde,
a quem seu pai comprara Romarigães. O Bisconde
vislumbrava apenas uma solução: fazer de Luís familiar do Santo Ofício. E assim
aconteceu por intercessão do filho do conde de Castelo Melhor.
A narrativa continua com os descendentes de Joana Azevedo e Luís de Antas da Cunha, possuidores da Casa Grande de Romarigães, com fases de sucesso e insucesso, até à perda total da propriedade.
[1] Morgado
de Azevedo: «O senhorio de Azevedo remonta à época medieval, constando o
apelido no Livro Velho de Linhagens, segundo o qual D. Godinho Viegas de
Azevedo, rico-homem do tempo do conde D. Henrique teria sido o primeiro a
usá-lo. A casa-solar situa-se no concelho de Barcelos. São oriundas desta
família diversas personalidades, entre as quais, Lopo Dias de Azevedo que
acompanhou D. João I na batalha de Aljubarrota, tendo recebido em recompensa o
senhorio de São João de Rei. Vários membros da família serviram no Norte de
África e na Índia» (http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4223343).
Zé, é a segunda vez que quero comentar, um desejo enorme de te dizer o que sinto. E o que acontece? De repente, deixo de poder escrever. E nas tentativas de perceber o que se passa, desaparece tudo o que escrevi.
ResponderEliminarVou partilhar, só para saber se recebeste ou não se ficou postado no blogue.
E curioa esta historio da Casa dos Azevedo ou Solar dos AZEVEDOS, ali perto de Galegos. Vou tentar aprofundar
ResponderEliminaristo e fazer um apanhado a volda desta familia dos AZEVEDOS da Lama-Barcelos