quinta-feira, 18 de julho de 2013

FERNANDO PESSOA: O ÚLTIMO SORTILÉGIO



Fernando Pessoa O último sortilégio
Carta (104) de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões, a 16 de Outubro de 1930, na qual envia o poema O Último Sortilégio:

«[…]
Mando-lhe uma composição minha - aliás feita ontem – para a Presença, mas realmente não sei se ainda chegará a tempo.
Chamo a sua atenção para um pormenor que é preciso vigiar – o qual pormenor é dois pormenores. Trata-se  de não esquecer as aspas  que marcam o poema como «dramático», isto é, falado por terceira pessoa, e de verificar que, como essa pessoa é mulher (e, digamos, bruxa), os adjectivos não saiam no masculino onde a pessoa falante se refere a si mesma.
Uma advertência: este poema é uma interpretação dramática da «magia da transgressão». Se, por alguma circunstância, achar melhor não o publicar, não hesite em não o publicar»
(Fernando Pessoa, Correspondência 1923-1935, edição Manuela Parreira da Silva, 1999, Editora Assírio e Alvim, pp.215, 414).
O Último Sortilégio

"Já repeti o antigo encantamento,
E a grande Deusa aos olhos se negou.
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
As orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só o vento volta onde estou toda e só,
E tudo dorme no confuso mundo.

"Outrora meu condão fadava, as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via.
E as folhas da floresta eram lustrosas.

"Minha varinha, com que da vontade
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada,
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

"Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado erguida,
Ou, em êxtase mágico perdida,
Ao luar, à boca da caverna funda.

"Já as sacras potências infernais,
Que, dormentes sem deuses nem destino,
À substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus.
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um deus.

"E as longínquas deidades do atro poço,
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço,
lnevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.

"Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Tu, Lua, cuja prata converti,
Se já não podeis dar-me essa beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Ao menos meu ser findo dividi
­Meu ser essencial se perca em si,
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

"Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo!
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anônima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!”

Publicado in Presença, n.º29, Coimbra, Dezembro de 1930.

«O Último Sortilégio é a confissão-encantamento de uma feiticeira que renuncia à sua arte para renascer sob outra forma e com outra vocação. Neste sentido, o poema prolonga a Abdicação de 1913 e anuncia os grandes textos em verso e em prosa sobre a iniciação que datam dos anos 1932-1933. É, segundo diz Pessoa, "uma interpretação dramática da «magia da transgressão". O primeiro passo, na via que o poeta decide encetar na busca da verdade oculta, é essa tabula rasa, ou essa metanóia: tem de despojar-se de si mesmo para se tornar o seu próprio ser original e universal» (Robert Bréchon, Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 490-491).
«A partir de 1914, ano do nascimento dos heterónimos, Pessoa passou a classificar-se de autor de tipo dramático e a apontar, para esclarecer, o exemplo de Shakespeare:
“Isso (a obra dos heterónimos) - escrevia em 19.1.1915 - é sentido na pessoa de outro; é escrito dramaticamente, mas é sincero (no meu grave sentido da palavra) como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação dele. [...] Não é Shakespeare, talvez, o maior poeta de todos os tempos, pois não me parece possível antepor alguém a Homero; mas é o maior 'expressor' que houve no mundo, o mais insincero de quantos poetas tem havido, sendo por isso mesmo que exprimia com igual relevo todos os modos de ser e de sentir, e com igual alma vivia os diversos tipos psíquicos - verdades gerais 'humanas'- em cuja expressão se empenhou”» (Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 183-4)[1].



[1] Os dois últimos textos foram recolhidos, a 16 de Junho de 2013, em http://pessoana.blogspot.pt/p/apresentacao.html.

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