segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Os Azevedos da Portela das Cabras em A Casa Grande de Romarigães de Aquilino Ribeiro



Os Azevedos da Portela das Cabras
em A Casa Grande de Romarigães de Aquilino Ribeiro

Aquilino Ribeiro, activista republicano, apresenta, na «crónica romanceada» da Casa Grande de Romarigães, uma paródia de linhagens. Na primeira parte, aparecem duas linhagens, em confronto: de um lado, os Cunha de Romarigães, descendentes do licenciado abade Gonçalo da Cunha e, do outro, a família Azevedo da Portela das Cabras, que se diz descender do rei merovíngio Quilderico, passando por Lopo Dias de Azevedo, armado cavaleiro pelo próprio Mestre de Avis, na batalha de Aljubarrota. 
Depois da fusão, em conflito, das duas linhagens, pelo casamento de Luís de Antas da Cunha com Joana de Azevedo, a narrativa centra-se nos descendentes desse casal, sediados na Casa Grande de Romarigães, passando por períodos áureos e decadentes até à ruína, da qual se recupera com a mudança da posse para a bisneta do boticário Bento da Ponte, casada com Hilário Barrelas (uma máscara onomástica hilariante para Aquilino?), sem qualquer vislumbre de nobreza.
 Assim foi e assim é hoje, na roda da posse e no avanço democrático: da nobreza para a burguesia ou para o povo. Assim foi com a posse da Casa Grande de Romarigães, com a posse de algumas das casas dos Azevedos da Portela das Cabras ou com a Quinta de Azevedo de Lama (Barcelos), agora, na posse da empresa Sogrape.
É de considerar que, provavelmente, certos dados biográficos do autor poderiam ter influenciado a construção irónica da obra-prima. Certo é que Aquilino é filho do padre Joaquim Francisco Ribeiro e casado, em segundas núpcias, com Jerónima Dantas Machado (a menina de olhos grandes, castanhos e leais»?),possuidora por herança da casa grande de Romarigães, onde o casal habitou, depois do restauro, durante o qual Aquilino diz ter encontrado «uma rima de papéis velhos» e, nela, um manuscrito da autoria de Manuel Afonso, de Venade, intitulado «Vida de D. Luís António de Antas e Meneses, sargento-mor de Milícias e procurador às Cortes de 1828». Este manuscrito, as «Cartas de dois amantes verdadeiros» e ainda o que mais houvesse de interesse para a obra nessa rima de papéis velhos poderiam ter sido fonte para a crónica romanceada.


Insere-se na narrativa, nos capítulos III e IV, a história nacional da guerra da Restauração com a invasão da Galiza. Entre os invasores ia a fidalguia minhota, da qual fazia parte Luís de Antas da Cunha da Casa Grande de Romarigães. A nobreza do Alto Minho e da Galiza, aparentada, entendia-se; por isso, tudo decorreu entre hóspedes e anfitriões. Como entretenimento, os jovens oficiais pescavam ou visitavam educandas e noviças às grades dos conventos galegos. É nesse contexto que surge a personagem Joana de Azevedo, que «pertencia à casa de Azevedo, de Portela das Cabras, termo de Barcelos, filha de Simão de Vilas Boas, senhor do morgadio[1], e de sua primeira mulher, D. Ana de Barros Rego». Era prima em terceiro grau de Luís Antas da Cunha, que decidiu ir ao convento oferecer-lhe os seus préstimos. Esse encontro foi o primeiro de muitos, uma vez que caíram de amores. Porém, ela fora destinada pela família e com seu consentimento à vida religiosa, para que o morgadio ficasse incólume para seu irmão, Gualter de Vila Boas, filho do segundo casamento de seu pai - «sacrificando-se, era um preito que rendia à fidalguia dos Azevedos». Preparava-se, então, para os votos, quando surgiu o primo a transtornar os planos familiares.
A ferroada republicana é aplicada à genealogia da família Azevedo pela voz do narrador, a propósito da compreensão de Luís da Cunha pelo drama do «holocausto» da prima, sacrificada «à vesânia senhorial duma família, que se orgulhava de remontar a Quilderico por um filho engendrado atrás da porta». Perguntar-se-á quem foi Quilderico e qual a sua importância. Quilderico ou Childerico I (filho de Meroveu), Childerico II e Childerico III foram reis da mais antiga dinastia franca, a dinastia merovíngia (séc. V a VIII). Os reis merovíngios     consideravam-se e eram considerados descendentes de um filho de Jesus Cristo com Maria Madalena. Sabe-se que a busca de “heróis” fundadores de linhagens foi uma constante desde os primórdios das monarquias ocidentais. Esses “heróis” poderiam ser figuras religiosas, mitológicas, literárias ou históricas. Sabe-se que algumas famílias da nobreza portuguesa pretenderam descender dos merovíngios. É uma pretensão estranha, por contrária à política do Vaticano, renegadora de Maria Madalena e da sua relação com Cristo. Mas onde terá Aquilino recolhido essa informação genealógica dos Azevedos? À «rima de papéis velhos» ou à imaginação pícara?
Depois das divagações genealógicas, regressemos à narrativa dos amores de Luís da Cunha com Joana de Azevedo. Entre os dois primos, sucede o enamoramento, a paixão e a fuga estrondosa, provocada pelos sentimentos do casal, acrescidos da vontade expressa de Joana: «Porque me não leva daqui, primo?» (p.60). A fuga combinada complica-se por falta da chave no lugar habitual, segue-se o arrombamento da porta do convento e a travessia em bote do rio Minho, entre a vida e a morte, com promessa de boa capela à Senhora do Amparo. Chegados à Casa Grande, casaram de imediato, perante a surpresa da família do noivo e sem participação à família da noiva, situação geradora de constrangimento e de conflito.


O capítulo IV termina com o casamento apressado, na capela da Senhora do Amparo da Casa Grande de Romarigães, realizado pelo padre-mestre, Reverendo Sebastião Mendrugo, que «incorria na pena de anátema», por se substituir ao pároco e por não ter a licença eclesiástica para o casamento – desobediências às imposições do Concílio de Trento, capazes de tornarem o casamento nulo, se contestado. Acresce à problemática eclesiástica o crime de rapto de Joana de Azevedo de um convento de La Guardia.
(Saliente-se a importância do padre Sebastião Mendrugo como o informador de dados para esta parte da narrativa, uma vez que ele é apontado por Aquilino, na introdução à obra, como autor do caderno, datado de 1680, com o título «Livro que há-de servir ao assentamento das coisas notáveis que assucederam na Casa Grande de Romarigães, também chamada Quinta de Nossa Senhora do Emparo».)
No que respeita à linhagem da família Azevedo, o capítulo V completa o anterior. Nele se apresenta a contenda, entre a família de Luís de Antas da Cunha e a família de Joana de Azevedo da Portela das Cabras, em consequência do referido casamento.
Na primeira parte, assiste-se à diligência diplomática de Domingos da Cunha, o pai de Luís, que, ciente da gravidade do problema, escolheu Florêncio da Cunha Beça, fidalgo da Ribeira do Cávado, destro em etiqueta e bom conversador, para embaixador da causa junto do pai de Joana, «Simão Vilas Boas e Azevedo, senhor da Portela das Cabras», de quem ainda era primo (p.73).
Queixava-se Florêncio de os seus familiares terem sido «esbulhados pelo primeiro morgado, Lopo Dias de Azevedo», de senhorios, a pretexto «vero ou falso», de que, a soldo de Castela, seu tetravô pretendera matar o Mestre de Avis. Certo é que Lopo Dias de Azevedo tinha sido muito próximo do Mestre de Avis, uma vez que fora por ele armado cavaleiro, imediatamente antes da batalha de Aljubarrota.
Na posse dos referidos conhecimentos, o leitor acompanha Florêncio Beça, que, com «grande estadão» e significativos presentes, chegou à casa «do senhor da Portela das Cabras». Este atendeu «o primo» com «engulho», pois a notícia do casamento já tinha chegado e fora recebida em pé de guerra pela ofensa-crime cometida. A descrição de Simão de Azevedo revela a antipatia do narrador e de Florêncio Beça. O discurso proferido pelo pai de Joana começa por colocar a tónica nas origens paternas do noivo, Luís de Antas da Cunha, nomeadamente, nos avós, o abade Gonçalo da Cunha e a «manceba» Maria Roriga, para concluir não poder admitir na «linhagem gente de tal costado». Certamente esta atoarda apresenta a questão aquiliniana do seu nascimento e vai alicerçar o discurso narrativo de Florêncio Beça, em defesa da progénie clerical, citando o caso do «grande Dr. Francisco de Sá de Miranda, ali da vizinha Quinta da Tapada» e do prezado Bento de Azevedo, filho do Padre Sebastião de Azevedo, abade de Galegos, e faz o rol de Azevedos, assim, originários (pp.76-77). Acrescenta algo de muito curioso na bastardia: o que fazia a fidalguia em Portugal era o varão, «olhava-se para quem era o pai»; quanto à mãe «basta que seja formosa e honesta, vaso de eleição na pessoa e não no sangue».
A defesa da progénie clerical, tão cara ao autor, com «o grande Dr. Francisco de Sá de Miranda» à cabeça, poderia ser considerada uma motivação para a importância discursiva deste episódio.
Todavia, Simão de Azevedo não se deixa convencer e declara que, na sua prole, manda ele e que Joana «está riscada do livro dos Azevedos», acrescentando aquilo que vai gerar consternação no emissário: «a justiça o confirmará, se Deus quiser». E informa que a queixa transitou para a mesa da Consciência e que o Tribunal do Santo Ofício de Coimbra decidirá, uma vez que a Inquisição de Espanha está a organizar o processo. E mais declara que «os Azevedos e Vilas Boas só ficarão limpos quando os dois [Luís e Joana] subirem de sambenito e carocha na cabeça, o patíbulo da Praça da Lã». Em defesa da tese do pai de Joana, juntam-se o meio-irmão e a madrasta, tendo esta acrescentado que, naquela família, só faltava um santinho, pois já havia «navegadores, poetas, generais, um bispo, um trinchante, até um inquisidor». O papel de santa estava destinado a Joana, que o aceitara e abraçara de livre vontade.
(Saliente-se o “estilo heroi-cómico” da última parte do diálogo, nas falas de dona Floribela, a madrasta de Joana.)
Florêncio Beça viu recusada a sua missão pacificadora e partiu sem delongas com a noção de que o caso era insolúvel pela via diplomática e muito difícil de resolver por outra via.


A narrativa salta para Romarigães onde encontramos Domingos da Cunha nos preparativos da «sege que em hora iludida destinara a brilhar na capital de Espanha», a fim de viajar para Lisboa em busca da solução para o grave problema familiar. A viagem é interrompida, ainda antes de Barcelos, por um homem que  indica o caminho para Braga, de modo a passarem pela Portela das Cabras, o que evidencia o conhecimento do autor desse itinerário, quando escreve «se querem marchar pelo seguro e é certo que vão para o Sul, metam a Vila Verde pelo Rio Mau» e, mais adiante, «o melhor caminho é por Nevogilde» - de  facto esta é a alternativa, ainda hoje, para quem não quiser seguir na estrada de Ponte de Lima, Corvos, Braga. Atravessavam terras de Simão de Vilas Boas e Azevedo e por homens dele foram interrompidos na viagem e atacados, saindo vencedores os homens de Domingos da Cunha, que comenta: «Mas de que raça ele é, este Simão de Vilas Boas e Azevedo, neto de Quilderico!» (p.87).
Em Lisboa, Simão de Azevedo  tinha grandes conhecimentos, «gente toda ela parcial do infante e da rainha», mas Domingos da Cunha tinha por certo Castelo Melhor e o Bisconde, a quem seu pai comprara Romarigães. O Bisconde vislumbrava apenas uma solução: fazer de Luís familiar do Santo Ofício. E assim aconteceu por intercessão do filho do conde de Castelo Melhor.

A narrativa continua com os descendentes de Joana Azevedo e Luís de Antas da Cunha, possuidores da Casa Grande de Romarigães, com fases de sucesso e insucesso, até à perda total da propriedade.


[1] Morgado de Azevedo: «O senhorio de Azevedo remonta à época medieval, constando o apelido no Livro Velho de Linhagens, segundo o qual D. Godinho Viegas de Azevedo, rico-homem do tempo do conde D. Henrique teria sido o primeiro a usá-lo. A casa-solar situa-se no concelho de Barcelos. São oriundas desta família diversas personalidades, entre as quais, Lopo Dias de Azevedo que acompanhou D. João I na batalha de Aljubarrota, tendo recebido em recompensa o senhorio de São João de Rei. Vários membros da família serviram no Norte de África e na Índia» (http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4223343).

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013



CANÇÃO DE NATAL



 

quem quer ser maria
ao senhor obedecer
no feminino parir e sofrer
faça-se em mim a sua palavra
ó escrava do divino
de olhos postos e mãos direitas
como é perfeita
os anjos cantam o doce hino
para ela e para o menino

o homem louva a submissa
canta-lhe o hino e reza missa
descem os anjos a seu comando
e os violinos vão tocando
quem quer ser maria
muitas correm à porfia

passam os séculos e assim é
mas a outra bate o pé
queima-se a bruxa na fogueira
maria é boa e fagueira
ao poder do homem diz que sim
ele é poderoso e fala latim

mjd




















terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Postal de Natal

Para todos os visitantes o meu postal de Natal. mjd


A Virgem, o Menino e Santa Ana de Leonardo da Vinci, 1510, óleo sobre madeira 168 × 112 cm Museu do Louvre, Paris



Sorrir
Olhar
São quatro a brincar
Em amor e ternura
Cadeia pura
Harmonia
Universal

Boas Festas
 Feliz Natal

                                      mjd

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Aprender a Morrer

Aprender a morrer é uma vertente da vida muito cara à autora deste blogue; sendo que «aprender até morrer» inclui a aprendizagem do morrer - a única certeza dos seres vivos. Em Junho, postou-se um texto tradutor da preocupação por essa aprendizagem tão oculta. A máxima «Para morrer basta estar vivo» simplifica o problema de uma forma redonda e absoluta. 
Já vi morrer uma pessoa muito querida com a consciência plena de que chegara o momento da morte. Senti que a sua morte era encarada como uma partida para o lugar da sua crença, uma vez que o seu apelo foi uma declaração de confiança dentro da sua fé. Concluí que a crença pode ajudar os crentes na sua «passagem».
Motivou-me voltar ao assunto o artigo do Expresso de Tolentino de Mendonça, intitulado «Aprender a morrer». Dele saliento as seguintes ideias: «a morte é uma expressão da vida» e pode ser encarada como a oportunidade para olharmos a vida mais profundamente, pois ela amplia-a. Depois disto, o autor envereda pela aprendizagem «a estar com os outros», citando a obra de Cicely Saunders  Velai comigo, que diz repetir continuamente a frase «Temos de aprender». Tolentino acrescenta que temos de aprender a embalar a fragilidade dos outros e a nossa, ajudar a não desesperar e a encontrar um fio de sentido...
Tolentino é crente, é padre, e isso permite-lhe ir para além da ciência acerca de «que coisa são as nuvens» - temática geral das suas crónicas.
Aprender a morrer parece ser mais difícil para uns do que para outros, na certeza de que é sempre difícil e assunto tabu naquilo que diz respeito ao próprio formulador do problema. Situados aí,  a resposta está nos outros e na nossa relação com eles. Insatisfeita com as não respostas, continue-se a aprender até morrer.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

quarta-feira, 31 de julho de 2013

CLARABOIA de José Saramago (uma leitura crítica)




Sou uma leitora da obra de José Saramago.
Num primeiro momento, a obra gerada nos anos cinquenta do século passado, a segunda obra do autor, não me interessou de imediato, embora não a esquecesse por a desejar. Encontrei-a há dias com 60% de desconto na feira do livro do Continente e nem hesitei em comprá-la e em lê-la de imediato. A obra de Saramago implica estudo, atenção, registo. Estamos perante um autor que é um óptimo observador e um grande leitor.
Era minha intenção alinhar as imperfeições desta obra face ao aperfeiçoamento contínuo processado na sua carreira de escritor. Confesso que pouco anotei, perante a construção bem estruturada da narrativa, em prédio de rés-do-chão e dois andares, onde vivem seis agregados familiares. Em alternância, assiste-se à rotina e ao quebrar da mesma de cada um dos grupos humanos. Destaca-se a personagem Silvestre todo José Saramago, no amor, na solidariedade e na esperança num futuro melhor. Esperança que se vai esvaindo na obra saramaguiana, se atendermos ao final desesperançoso da sua obra. E recordo Caim em homicídio colectivo, para ficar frente a frente com deus, perante o qual só sente revolta.
Silvestre teria sido construído em homenagem ao avô Jerónimo Hilário, a quem a obra é dedicada. Se assim não é, foi assim que eu senti que fosse.
Com a intenção de encontrar imperfeições e perfeições fui lendo a obra e fazendo os registos que se seguem:
  1. O título CLARABOIA é uma palavra bem sonante e de grande significado na obra. O narrador como que espreita pela clarabóia do prédio de seis inquilinos, para penetrar no âmago da sociedade portuguesa dos anos 50, na qual, para subir economicamente, era preciso uma ‘palavrinha’ de alguém a alguém de maior importância, senão não se sairia de cepa torta. Essa ‘palavrinha’ podia levar consigo alguém como Lídia ou Maria Cláudia. A sociedade, aparentemente inocente. era de uma perversidade hipócrita e maledicente. Abrem-se excepções na sociedade para aqueles que trabalham e estudam/lêem, tendo como ideal a esperança de uma sociedade melhor.
  2. A personagem Silvestre, o sapateiro, surge bem delineada, apenas com um senão que me levou a parar e a estudar o assunto da descrição das pernas do sapateiro adjectivadas de «enfezadas», para, depois, com espanto, surgirem altas, ainda que excessivamente magras. O referido adjectivo conduz o imaginário do leitor para pernas pouco desenvolvidas no que respeita ao osso insuficientemente mineralizado, pelo que não poderiam ser altas e de osso bem desenvolvido. Penso que o problema das pernas do sapateiro estaria na musculação atrofiada pela posição do ofício. Enquanto o tronco se desenvolveria pelo trabalho braçal, os músculos das pernas ir-se-iam atrofiando na posição de sentado.
  3. O retrato da gorda Mariana traduz o olhar amoroso, a que o autor nos habituou no tratamento da mulher amada. E o sentimento amoroso do casal, Silvestre e Mariana, é cuidadosamente tratado em gestos atentos e em palavras reveladoras de uma relação amorosa saudável, cheia de graça e de sensibilidade.
  4. O corpo da menina Isaura parece-me sofrer de excesso de adjectivação com desnecessária adversativa (p.17): «esguio e magro, mas flexível e elegante». Em meu entender, bastaria: esguio, flexível e elegante; ou apenas: esguio e flexível.
  5. Destaca-se o cenário lisboeta com rio e neblina nos olhos e no sonho da costureira Isaura, por onde viaja uma fragata de descrição primorosa na sua mobilidade. Fez-me lembrar Pessoa.
  6. O narrador não aprecia mulheres grandes: «demasiado grande para mulher», a propósito da vizinha Justina (p.22), que vivia em casa com «atmosfera de túmulo» (39), acompanhada do gato e do marido jornalista, baixo e atarracado. Pelo silêncio de sua casa, Justina acompanha todos os ruídos do prédio - uma 'clarabóia' auditiva.
  7. As mulheres sedutoras, a sensual Lídia e a jovem e bela Maria Cláudia, são empurradas pelas progenitoras para escravas sexuais de homem rico, numa visão comercial da maternidade.
  8. Lídia lê Os Maias para preencher o ócio, «interessadíssima no mundo fútil e inconsequente de Os Maias» (p.37) e sublinha uma frase de Maria Eduarda a Carlos: «além de ter o corpo adormecido, o seu corpo permaneceu sempre frio, frio como o mármore». Talvez possamos ler na primeira citação a opinião do autor sobre a referida obra de Eça de Queirós.
  9. Isaura lê todas as noites. O narrador refere a leitura de A Religiosa de Diderot (86) e transcreve a parte em que a madre superiora tenta seduzir Susana – talvez o nome escolhido por Diderot para a personagem seja referência intertextual ao episódio bíblico de ‘a casta Susana’ (133-140). A obra lida viria a desempenhar um papel importante no autoconhecimento de Isaura: a sua homossexualidade descoberta quase em simultâneo por ela e pela irmã assediada enquanto dormia. Segue-se a zanga das duas irmãs e a inquietação curiosa das duas mulheres mais velhas.
  10. O culto da música clássica faz-se em casa de Isaura e Adriana com dificuldade em entender os que ouvem música ligeira, o caso de Maria Cláudia. Assiste-se à discussão sobre o bom e o mau, o bem e o mal – relativismo ou certeza (88-91).
  11. Em oposição ao tardio Caim, encontrámos a personagem Abel, que se hospeda em casa do sapateiro. Abel vai reler Os Irmãos Karamazov de Fiodor Dostoievski, para esclarecer «alguns juízos resultantes da primeira leitura» – considera esse acto um trabalho (117). Silvestre e Abel, um encontro de caracteres interessante como estratégia que permite a apresentação e o desenvolvimento de ideias políticas e sociais. Saliente-se o decadentismo de Abel formulado na pergunta «para quê», à qual os poetas tentaram dar resposta na poesia do final do século XIX e princípio do séc. XX – refira-se Eugénio de Castro com resposta de Fernando Pessoa e o poema «Para quê» de Afonso Lopes Vieira. Abel queria descobrir o sentido oculto da vida, contudo, a isso, já Pessoa respondera: «mas o sentido oculto da vida é não ter a vida sentido oculto nenhum». Enquanto Silvestre defende a utilidade da acção, Abel responde com Fernando Pessoa: «Queriam-me casado, fútil e tributável?», para referir a gratuitidade da poesia em geral e da pessoana em especial (267). Dir-se-ia que o autor aprecia essa poesia como arte, mas, para a sua arte, opta pela utilidade, pela escrita defensora da ideologia socialista, já esboçada neste romance pela voz de Silvestre, herdeiro dos livros de outro Abel, o falecido Abel Nogueira, socialista autodidacta. A consciência da inutilidade é apresentada como o calcanhar de Aquiles do jovem Abel.
  1. «De Espanha nem bom vento nem bom casamento»: apresenta-se o casal infeliz do português Emílio com a espanhola Cármen, cujas falas são escritas em castelhano, mostrando domínio dessa língua por parte do autor. A confirmação nesta narrativa do aforismo não pode deixar de despertar um sorriso no leitor de hoje, por saber que Saramago encontrou o amor e a felicidade junto da espanhola Pilar.
  2. A construção do vocativo: «Mas, oh, homem, quem te diz que não é o caso do senhor Morais?» (p. 252) e «oh, sociedade» (p.272) – aquele «oh» deveria ser o ‘ó’ do vocativo. E ficaria: ‘Mas, ó homem,’, ‘ó sociedade’.
  3. Como leitora de Saramago aprecio muito o processo de desconstrução das expressões feitas. Acontece que neste segundo romance dos longínquos anos 50, Saramago já desfaz a expressão  «cortar as pernas» (p.255), distanciando-se através do olhar de um estrangeiro imaginário que estivesse a ouvir e a ver a cena.
Conclusões:
  1. Tal como nos romances seguintes, Saramago revela um extraordinário poder de observação na descrição dos ambientes e das personagens..
  2. Exemplar tratamento do universo masculino e feminino nos anos 50:
    1. os homens ou mulheres ‘homadas’ preocupados com o dinheiro e as mulheres prestando-lhes contas quer estejam ou não em dependência económica.
    2. Os casais desavindos em urgência de divórcio, antes que pratiquem um crime.
    3. O papel do amor autêntico capaz da transfiguração em personagens com vidas úteis, pautadas pela construção esperançosa de um mundo melhor.
    4. A paternidade e a maternidade apresentadas como estragadoras do filho (Henrique) ou das filhas (Lídia e Maria Cláudia) – relação complicada entre pais e filhos, talvez, por isso, a referência à obra Os Irmãos Karamazov.
  1. A importância dos media nos anos 50:
    1. A rádio na família de Adriana para a música clássica; na família Anselmo para música ligeira, fado e noticiário.
    2. A importância do jornal para o sapateiro, que o lia de ponta a ponta, e para Anselmo, a quem interessava sobretudo para a estatística do futebol.
    3. A importância do livro e das bibliotecas: a sabedoria, a cultura geral, a citação sobretudo de Fernando Pessoa, mas também de Shakespeare. A influência da obra literária para o autoconhecimento – o caso de Isaura com A Religiosa de Diderot.

Apreciei deveras a obra. Nascida em 1944, considero Clarabóia um belíssimo retrato social com a brecha necessária para o amor e a esperança.O prémio está em amar, transfigurar e construir na esperança de que o mundo venha a ser melhor. Veja-se para terminar o pequeno excerto assinalado na contracapa, tradutor do ideal do futuro prémio Nobel:
«- Vivemos entre homens, Ajudemos os homens.
- E que faz o senhor para isso?
- Conserto-lhes os sapatos. Já que nada mais posso fazer agora

Maria José Domingues