Sá de
Miranda: Comigo me desavim [1]
«Sem
Miranda não tínhamos um Bernardes; sem Miranda não havia um Ferreira, um
Caminha; sem Miranda não florescia um Camões» - Carolina Michaëlis de Vasconcelos.
Sá de Miranda: Comigo me desavim
Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?
de Francisco Sá de Miranda
(1481-1558)
(1481-1558)
Dentro do
tema quinhentista «imigo de si», estas trovas em medida velha exprimem o
conflito interior da discrepância do eu poético consigo mesmo, sem fuga
possível. O paradoxo consiste na coabitação do eu duplicado e discordante.
Dentro do eu poético, o eu e o outro eu conflituam em desacordo e
inimizade sem solução.
O mesmo tema
é trabalhado por muitos poetas tornando-se um tema que atravessa os tempos,
desde Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro e Camões, até Alexandre O’Neil, Jorge de
Sena, Vasco Graça Moura e Maria Teresa Horta, entre outros.
Ouçamos Alexandre O’Neil (1924-86) cruzando ironicamente
dois poemas de poetas de tempos bem distantes entre si - Sá de Miranda com o
poema acima citado e Mário de Sá Carneiro (1890-1916) com o poema 7, em Indícios de Oiro (7 / Eu
não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: /
Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro. )
Sá de Miranda Carneiro de Alexandre O’Neil
comigo me
desavim
eu não sou eu nem sou o outro
sou posto em todo perigo
sou qualquer coisa de intermédio
não posso viver comigo
pilar de ponte de tédio
não posso viver sem mim
que vai de mim para o Outro
eu não sou eu nem sou o outro
sou posto em todo perigo
sou qualquer coisa de intermédio
não posso viver comigo
pilar de ponte de tédio
não posso viver sem mim
que vai de mim para o Outro
Ao gosto das
cantigas de amigo e dentro da temática mirandina, Maria Teresa Horta cria o
poema com um sujeito lírico feminino dividido interiormente entre ser senhora
de si ou ser senhora de outro. Exprime-se o conflito da autonomia da mulher no
silêncio da incompreensão geral e, em simultâneo, a rebeldia da publicação desse
conflito. Em 1974, a obra que contém o poema abaixo citado adota o seu título:
Minha
senhora de mim de Maria Teresa Horta
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
recusando o que é desfeito
no interior do meu peito
minha senhora
de mim
sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
recusando o que é desfeito
no interior do meu peito
Minha Senhora de Mim, Editorial Futura, 1974 - Lisboa, Portugal.
[1]
Este trabalho tem por base textual «”Comigo me
desavim”, “Minha senhora de mim” e Minha senhora de quê”» de Sérgio Guimarães de
Sousa, in Estética e Ética em Sá de Miranda, Opera Omina, 2011.
«O tema é revisitado por Maria Teresa Horta, num poema intitulado «Minha senhora de mim», inscrito sob a égide do de Sá de Miranda, e que anda longe de uma cadência nupcial» ( SOUSA, Sérgio Guimarães, «"Comigo me desavim", "Minha Senhora de mim" e " Minha senhora de quê»», in Estética e Ética em Sá de Miranda, p.200).
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