quarta-feira, 24 de junho de 2009

Cara de manga apodrecida

O espelho social
É dia 23 de Junho. Há muito a preparar para o alegre arraial de S. João, a festa de Verão, onde se juntam as três gerações. No dia anterior, Leonor, avó sexagenária, tinha ido ao cabeleireiro, para, no meio de tantas ocupações, não ter de pensar em cabelo. Prepara-se cuidadosamente para sair e fazer as compras da última hora.
Dirige-se a uma loja da fruta, que lhe fora indicada como a melhor nas redondezas. Vai escolhendo, quando encontra três mangas: caras, engelhadas, manchadas, quase podres. Pega na melhor das três e, dirigindo-se à vendedora, pergunta se não teria mangas melhores.
A isso, a vendedora, mulherão dos seus quarenta e pico, responde-lhe:
- Olhe, mangas, não trouxe, porque, sabe, elas estavam com uma cara... (e fez um trejeito de desagrado, enquanto olhava para a cara da compradora)... assim... como as nossas.
Leonor levanta os olhos da manga, mira-a atentamente pela primeira vez e responde:
- A sua está bem boa...
Ao que a vendedora nada acrescenta. E a compradora junta aquela manga à sua série de vegetais seleccionados.
Sai, vai tomar um café, dirige-se ao primeiro espelho e comenta com um sorriso irónico:
- De facto, espelho meu, cara de manga em começo de putrefacção absoluta... mas viva! E aos seres vivos o melhor que lhes pode acontecer é envelhecerem saudavelmente.

sábado, 20 de junho de 2009

Rubaiyat no feminino

- Quando se fala em rubai, está a falar-se de poesia masculina?
- Sim, penso que sim. Não conheço Rubaiyat feminino.
- Mas uma voz feminina ficaria bem no coro polifónico.
- Desde que não destoasse...
- Em poesia, fica difícil saber, na hora, quem destoa.
- Tentemos a construção: «Bebamos licor dos deuses dourado,/ Servido d'alto por belo criado,/ Enquanto a conversa fútil flui,/ Com o mar ao fundo e céu nublado.»

Omar Khayyan, autor de RUBAIYAT


- Quem é Omar Khayyan?
- Um sábio persa, nascido no século XI(1044?), famoso na sua época, no domínio da matemática, da astronomia, da filosofia. Também foi poeta.
- Que se sabe dele, como homem de ciência?
- No que respeita à álgebra, classificou as equações algébricas; no que respeita á geometria, desenvolveu a teoria das linhas paralelas. Quanto à astronomia, construiu um calendário solar muito rigoroso.
- E na literatura?
- Passa a ser conhecido, no ocidente, quando, no século XIX, Edward Fitzgerald traduz Rubaiyat para inglês.
- Foi essa obra que Pessoa conheceu, estudou, tentou traduzir...
- E que o inspirou para criar o seu Rubaiyat. O tal diálogo intertextual que atravessa os séculos, como uma voz polifónica.
- Giro! Ergue-se uma voz e a ela juntam-se outras, através dos séculos...
- Penso que Pessoa era muito sensível a esse processo de trabalho poético. E vai deixando pistas na sua obra, para que encontremos essa polifonia.
- Já agora, cite-se um rubai que tenha sido feito por Khayyan, traduzido para o inglês por Fitzgerald e , para o português, por Pessoa.
- Escolho este:
«Já muita vez jurei de me emendar, / Mas não staria eu bebado a jurar?/ Mas vinha a primavera, vinham rosas,/ E emenda e jura se esvahiam no ar.»

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Rubaiyat

- Que título estranho o desse livro de Fernando Pessoa!
- De facto, Rubaiyat é um nome árabe. Há quem traduza por "canções de beber". A edição crítica optou pelo título árabe da obra do persa inspirador e autor do século XI-XII: Omar Khayyan.
- Como terá chegado até Pessoa?
- Certamente, através da tradução de Edward Fitzgerald, Rubaiyat of Omar Khayyam.
- Existe essa obra na biblioteca de Pessoa?
- Sim, e toda preenchida, nos espaços em branco, por ele. Tudo isso está a ser digitalizado, para que possamos aceder aos seus livros, sem sair de casa.
- Que escreveu ele no livro?
- Ele traduziu do inglês alguns rubai (quadra decassilábica, com o esquema rimático aaba) ou parte deles e criou outros. Tudo isso aparece nesta edição que estou a ler.
- Afinal que significa Rubaiyat?
- Um conjunto de rubai, acerca do vinho, como sedativo e ilusão perante a ilusão/desilusão do mundo e da vida, de um sábio marginal e solitário.
- Um encontro de sábios, através dos tempos, bebendo um copo, enquanto dialogam.
- A intertextualidade permite que isso aconteça, num diálogo infinito através de obras. E Pessoa cultiva-a, em diálogo de textos.

domingo, 14 de junho de 2009

A Fernando Pessoa, no dia do seu 121º Aniversário


tu ó mago adivinhaste
a palavra do presente e do futuro
search foi o apelido
naquela busca
sem parar
sabes
no computador
usamos esse termo
para buscar
mas o apelido search é teu
ó criador do mundo a vir
ouço a tua máquina de escrever
no teclado do meu pc
e no écran logo se vê
o texto a imagem
sempre a surgir
em search escrevo o teu nome
e o milagre acontece
nem vais acreditar
vê só o que aparece
[Resultados 1 - 10 de cerca de 1.180.000
Francês e Inglês e Português
paginas de Fernando Pessoa. (0,34 segundos)]

conseguiste Fernando
nascer e renascer
meus parabéns
com provas e dados

a imortalidade aqui a tens
espalhas-te por todos nós
e todos os dias renasces
aquilo que quiseste
tu conseguiste

a nova renascença
és tu e a língua portuguesa

os nossos olhos espraiam-se
em textos à nossa mesa
devorados como iguarias
de difíceis melodias
que nos prendem
em melopeia entranhada
e dela nascem
mesmo sem querer
outros saberes
outros sabores
das sensações
em novas construções

agradecemos o teu trabalho
valeu a pena
a tua alma
é do tamanho do mundo
daquele que não tem tecto
e não tem fundo

zedomingues

Ontem, dia do 121º aniversário de Fernando Pessoa

- O texto de ontem, para o aniversariante?
- Enviei-o por mail a três pessoanos. É sobre Pessoa e o seu Alexander Search. O apelido Search, escolhido pelo jovem Pessoa, parece surgir como o lema de uma vida que se inscreve em busca permanente de caminho literário . Se entendermos busca como pesquisa, verifica-se que Pessoa desde muito cedo se inscreve na filosofia grega, mãe da ocidental, tendo em conta que, ao contrário da sabedoria oriental «essencialmente religiosa» fundamentada na tradição, a filosofia grega «é pesquisa» e «nasce de um acto fundamental de liberdade frente à tradição, ao costume e a toda a crença aceite como tal».
- Esse «busca» em inglês faz muito sentido no universo dos computadores, em que sempre se search/busca.
- O texto que eu fiz cruza essas ideias.
- Então, publique-se o texto.
- Vou pensar nisso.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Aniversário de Fernando Pessoa

- Amanhã, 13 de Junho de 2009 é o dia do 121º aniversário de Fernando Pessoa.
- Nasceu no dia de Santo António!
- Por isso, ele se chama Fernando António. O nome laico do Santo era Fernando e o nome monástico era António.
- Interessante!
- E a família de Fernando Pessoa considerava-se aparentada com Fernando de Bulhões, isto é, Santo António.
- Coincidência interessante a da data desse nascimento...
- Pois é. E Pessoa dava muita importância aos detalhes da data do nascimento. Sobretudo ao ano do seu nascimento: 1888 mexia com a sua parte esotérica.
- Isso tem a ver com as profecias de Bandarra?
- De facto, O Terceiro Livro das Trovas desperta grande interesse a Pessoa, pois aí é anunciado o regresso de D. Sebastião, entre 1788 e 1888.
- Será que lhe passou pela cabeça encarnar D. Sebastião, na data limite da profecia?!
- Penso que, na realidade, isso não passaria pela cabeça de um racionalista prosaico; contudo, é possível ser assumido, ainda que ironicamente, por um poeta.
- Pois, um poeta é um criador.
- Pode, desse modo, construir novos mundos.
- Fernando Pessoa alguma vez exprimiu claramente essa ideia?
- Sim, no poema "Autopsicografia", onde diz que o poeta é um fingidor, pois chega a "fingir que é dor a dor que deveras sente".

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Camões e super-Camões


- Hoje, 10 de Junho, é dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Mas começou por ser um feriado em honra de Camões, na data provável da sua morte, desde 1911 ...
- Então, foi a República que criou este feriado.
- Camões é o poeta que une todos os portugueses.
- Mas eu já ouvi falar no super-Camões?
- O super-Camões é português e cosmopolita. A sua obra une os portugueses aos outros europeus e continua em expansão pelo mundo.
- Então só pode ser Fernando Pessoa.
- Claro. Ele e toda a plêiade por ele criada.
- O divino Pessoa capaz de conceber espiritualmente outras pessoas-escritoras!
- E ser ele e ser todos...

terça-feira, 2 de junho de 2009

o sujeito: quem (tem a faca eo queijo na mão).

- Coloquemos antes a questão no sujeito.
- Mas que sujeito? Não sei de quem fala.
- Continuo a falar da expressão "ter a faca e o queijo na mão", de que nos ocupámos no último diálogo.
- Ah! Pensei que o assunto já era outro...
- Fiquei a remoer. Essa expressão é usada para significar que o sujeito que tem a faca e o queijo na mão faz aquilo que quer do queijo e com uma faca. O sujeito/agente, neste caso, é aquele que age sobre outro com uma ameaça, sempre pronta a acontecer.
- E onde é que isso nos leva?
- Pensa nas profissões e vai verificando.
- Vejamos, então, por exemplo, o médico. Em certas situações, eu diria que ele tem, de facto, a faca e o queijo na mão...
- É um bom exemplo. Continua.
- Eu sou aluno, frequento uma escola. E ouço o meu pai dizer muitas vezes para ter cuidado com os professores, porque eles têm a faca e o queijo na mão. Quando ele diz isso, eu olho para ele sem entender a que propósito fala daquilo. Depois, vejo-o a encolher os ombros e ouço-o explicar que, em sua opinião, os professores, se me tomarem de ponta, podem fazer comigo o que lhes der na veneta.
- E como te sentes ao tomar consciência disso?
- Na altura fico assustado, depois passa; mas, em certas situações escolares, lembro-me das palavras de meu pai. Penso, então, que é a minha vida de estudante que está nas mãos dos professores, porque me podem passar ou reprovar. E nunca me sinto muito seguro quanto a isso.
- É com "a faca e o queijo na mão" que os ditadores aguentam o poder durante muito tempo. E que muitos seres humanos controlam e subjugam os outros, que, amedrontados, se conformam com o sistema.