O século XIX em Portugal decorreu entre dois importantes acontecimentos históricos que envolveram um grande sofrimento nacional: as invasões francesas, em 1808[1], e o Ultimato inglês[2], em 11 de janeiro de 1890.
Na década de 1870, surge uma geração de intelectuais, a chamada geração de 70, na qual se inclui Eça de Queiroz, com uma atitude crítica escarninha para com Portugal face aos países ditos civilizados – França, Inglaterra, Alemanha.
Segundo Eduardo Lourenço, essa geração pretendia, através da crítica exacerbada e contundente à Pátria, «desentranhar do Portugal quotidiano, mesquinho e dececionante, um outro, sob ele soterrado, à espera da oportunidade de irromper à luz do sol» (LOURENÇO, E., O Labirinto da Saudade, 1982: 99).
Essa atitude de crítica «exacerbada» teve o seu ponto de viragem em janeiro de 1890, com o Ultimato inglês, que despoletou a grande crise nacional, enquanto unia os portugueses num sentimento patriótico e fazia surgir, num momento de exaltação, a convergência de todas as imagens culturais da Nação (idem: 106).
Antero afirmava em carta a Oliveira Martins, datada de 25 de Janeiro de 1890, que «não estava ainda tudo morto, nem podre, nesta pobre terra», salvava-se o genuíno povo português, na sua saudável reação patriótica, tal como em todas as crises em que a alma nacional esteve em causa — alma essa que Junqueiro soube captar, prontamente, no seu grito de indignação contra o Ultimato, publicando em fevereiro de 1890, Finis Patriae.
A referida reação contra o Ultimato inglês gerou, um ano após a carta de Antero, a primeira revolta republicana, que eclodiu no Porto, em 31 de janeiro de 1891, tendo sido sufocada de imediato
À conversão de Antero seguiu-se a de Guerra Junqueiro, de Oliveira Martins, de Teófilo Braga e também a de Eça de Queirós com as obras A Cidade e as Serras e a Ilustre Casa de Ramires, publicadas depois da sua morte em 1900. Porém, antes dessas duas obras maiores, Eça revela a mudança de paradigma em contos publicados a partir de 1892.
Lendo a obra CONTOS[3], com declaração de que foram «escritos entre 1874 e 1897», seleciono dois, reveladores da «conversão», que aconteceu depois do Ultimato inglês, de acordo com as datas da «Nota Final» de Maria Helena Cidade Moura.
O conto «A PERFEIÇÃO», publicado em maio de 1897, poderia ter tido a intenção de mostrar que, desde a antiguidade clássica, na Odisseia,está escrito que a perfeição não é a condição realizadora da felicidade humana. Nesse conto, Ulisses encontra-se na ilha paradisíaca de Ogígia com a ninfa Calipso que o retém porque muito o ama e, por isso, o livra de todos os males, até mesmo da própria morte, e lhe proporciona os maiores prazeres, sem qualquer trabalho.
Contudo, Ulisses, saudoso de Ítaca e da sua família, olhava o mar em sofrimento até às lágrimas, desejoso do regresso. A deusa Atena intercede por ele junto de Zeus, que envia Mercúrio a Calipso, para que o liberte e o ajude a sair da ilha. E assim acontece. De novo, Ulisses vai enfrentar os perigos terríveis que o esperam mesmo em Ítaca, onde terá de fazer a guerra aos pretendentes, que aguardam a notícia da sua morte, para se apoderarem do que lhe pertence.
Este conto pode ser lido com uma ligação ao conto «Civilização», publicado, anos antes, em outubro de 1992, no qual Jacinto, em Paris, boceja de tédio, apesar de rodeado de tudo aquilo que a civilização lhe pode dar, desde o mais pequeno objeto até ao seu palacete, «o jasmineiro».
Nessa época, o tédio envolve certos escritores e intelectuais dos países mais civilizados, entre os quais estaria o nosso Jacinto a definhar.
A sua visita à quinta de «Torges», preparada ao longe com mil cuidados, sem que nada aconteça no local, faz com que chegue de surpresa. O caseiro e a sua família é de improviso que recebem Jacinto e seu companheiro de viagem, o narrador do conto. Assim, preparam o célebre jantar serrano, que vai deliciar o paladar sofisticado de Jacinto, e uma repousante dormida no chão.
Os dois contos ligam-se pela problemática humana da insatisfação, mesmo na perfeição paradisíaca organizada. Afinal, na imperfeição, pode estar o desafio da construção realizadora.
No caso de Jacinto, a reconstrução da casa e o zelo da quinta vão enchê-lo de vida e afastar o tédio. Conclui-se que não falta que fazer em Portugal. Já assim falava Ega a Carlos e a Maria Eduarda, em Os Maias:
«No fim, este diletantismo é absurdo. Clamamos por aí, em botequins e livros, «que o país é uma choldra». Mas que diabo! Porque é que não trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas ideias?... V. Ex.ª não conhece este país, minha senhora. É admirável! É uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão toda está em quem a trabalha. Até aqui a cera tem estado em mãos brutas, banais, toscas, reles, rotineiras.... É necessário pô-la em mãos de artistas, nas nossas. Vamos fazer disto um bijou!...»
Preparava-se a reviravolta das mentalidades.
Destaque-se a importância do conto «CIVILIZAÇÃO» como génese da obra A Cidade e as Serras, na qual se vai explanar a problemática do regresso à pátria, não para fazer a guerra dos pretendentes a que Ulisses se sentiu obrigado, mas para reconstruir e para se ser feliz pela realização em obras e amor. Tudo isso contado pela voz do amigo e companheiro, o narrador Zé Fernandes.
21 de fevereiro 2021
Maria José Domingues
[1] Note-se que 1807 fora o ano do ultimato francês e espanhol, que obrigava Portugal a declarar guerra à Inglaterra ou a ser invadido. Em consequência, a família real partiu para o Brasil, onde permaneceu durante 14 anos, e, a partir de 1808, Portugal foi transformado em campo de batalha entre ingleses (fortalecidos pela resistência popular) e franceses, até ao Congresso de Viena (1814-1815) (MARQUES, A.H.O., 1972: 577-580).
[2] Recorde-se que, segundo esse documento, Portugal era obrigado a renunciar a eventuais pretensões sobre o território que ligava Angola a Moçambique (hoje a Zâmbia e a Rodésia), provocando a morte do sonho nacional do chamado Mapa Cor-de-Rosa – a ligação por terra de Angola a Moçambique, constituindo, desse modo, um só território, um novo Brasil. Em 20 de Agosto do mesmo ano, nas negociações do tratado anglo-português, entre outras cláusulas, ficara assente que a Inglaterra reservava «o direito de se pronunciar sobre o destino das colónias portuguesas» (RAMOS, R., 1994: 142).
[3] Sigo a obra Contos – Obras de Eça de Queiroz, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 17ª edição.