MARCENDA
de Ricardo Reis a Saramago
Saramago leu as Odes de Ricardo Reis. A uma primeira leitura, a palavra «Marcenda», na ode XVIII, pode ter sido lida como um vocativo, nome de mulher. Depois da pesquisa, terá concluído que «Marcenda» é o gerúndio do verbo marcere, que significa murchar; portanto, o significado é ‘murchante’, ‘o que murcha’. O espírito criativo e irónico de Saramago construiu a personagem Marcenda de O Ano da Morte de Ricardo Reis nas duas vertentes, isto é, nome de uma jovem murchante, uma vez que a mão esquerda estava paralisada ou murcha. Desse modo, a jovem Marcenda tornar-se-ia o símbolo de Portugal salazarista, ainda jovem em 1936, mas murchante, porque não possuía uma ala esquerda, uma oposição consentida.
ODE XVIII -
Saudoso já deste Verão que vejo.
Saudoso já deste Verão que vejo.
Lágrimas para as flores dele emprego
Na
lembrança invertida
De
quando hei-de perdê-las.
Transpostos os portais irreparáveis
De cada ano, me antecipo a sombra
Em
que hei-de errar, sem flores
No abismo rumoroso.
No abismo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
Antes
que com a curva
Diurna
da ampla terra.
s.d. Odes de Ricardo Reis .
Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa:
Ática, 1946 (imp.1994). - 161. 1ª publ. in Atena ,
nº 1. Lisboa: Out. 1924.
À personagem Marcenda – virgem murchante – , Saramago contrapõe a personagem Lídia (nome da amada de Horácio e de Ricardo Reis) - mulher feita, trabalhadora, amante grávida, que, por isso, não murchará (imarcescível).
Maria José Domingues