«Era um dos
palácios do Minotauro»
A Casa Andresen – «Era um dos
palácios do Minotauro», segundo Sophia.
Interrogo-me acerca da metáfora
poeticamente assumida, em contraponto com o poema Carta a Ruben A., no qual, a
casa Andresen surge como o cenário da «infância antiga», um presente para os
dois primos escritores, capaz de ser semente poética com futuro, como as suas
obras o provam, escritas antes da chegada do Minotauro ao Palácio.
Esse período anterior ao
Minotauro ainda não contaminado pela morte permite construções leves e diáfanas
com asas de fantasia. Recordo a beleza do cenário de A Noite de Natal de
Sophia, quer no interior, quer no jardim do Palácio, e na escadaria que une os
dois espaços, pela qual desce a pequena Joana a contemplar a noite. Também é
inesquecível a obra Floresta de Sophia, na qual a menina, Isabel,
construía a casa dos anões com quem convivia sob o enorme carvalho antigo. E O
Rapaz de Bronze, em pleno jardim do Palácio, vive e convive com as mais
variadas flores, num baile em que todos participam, tendo como
convidada a pequena Florinda. Livros de uma beleza pulsante numa construção de
um presente aberto à felicidade da criança.
Que aconteceu para que aquele
belo palácio rodeado pela mais bela e cuidada vegetação seja apresentado como
sendo «um dos palácios do Minotauro»?
O Minotauro de Sophia
Assim o Minitauro longo tempo latente
De repente salta sobre a nossa vida
Com a veemência vital de monstro insaciado
Sendo o Minotauro um monstro mítico antiquíssimo comedor
de jovens em labirinto perfeito criado por Dédalo, talvez se possa pensar que
Sophia, a partir de certa época, passe a olhar o palácio como o labirinto da
morte. Acontece frequentemente olhar-se para a casa-família como a casa da morte quando nela vemos morrer
os nossos familiares mais queridos e aqueles que nela viveram e morrem ali ou em
outros lugares. De acordo com a cronologia apresentada por Isabel Nery na
biografia da poeta, o pai, João Henrique Andresen, morre com 59 anos, a mãe com
69, o irmão, João Henrique Mello Breyner Andresen, com 47, e o primo Ruben A.
com 55 anos. Esta última morte aconteceu em 1975, segue-se o poema Carta a
Ruben A., em 1976 e O Palácio em 1977. Talvez seja essa morte a motivadora
mais direta do poema, que abaixo se transcreve.
O palácio do Minotauro, a que não
faltava o grito, era vermelho, a cor da rebelião, mas, sobretudo, no contexto,
a cor do sangue dos jovens devorados pelo monstro. E, afinal, o palácio que
antes fora cenário de uma bela Noite de Natal é apresentado como gerador do
Kaos «onde tudo nascia». Recorde-se que
Kaos é
o título de uma obra póstuma de Ruben A., considerada pelo autor como a sua
obra máxima, perspetivada para quatro volumes e interrompida pela morte prematura.
O Palácio
Era um dos palácios do Minotauro
— O da minha infância para mim o primeiro —
Tinha sido construído no século passado (e pintado a vermelho)
Estátuas escadas veludo granito
Tílias o cercavam de música e murmúrio
Paixões e traições o inchavam de grito
Espelhos ante espelhos tudo aprofundavam
Seu pátio era interior era átrio
As suas varandas eram por dentro
Viradas para o centro
Em grandes vazios as vozes ecoavam
Era um dos palácios do Minotauro
O da minha infância — para mim o vermelho
Ali a magia como fogo ardia de Março a Fevereiro
A prata brilhava o vidro luzia
Tudo tilintava tudo estremecia
De noite e de dia
Era um dos palácios do Minotauro
— O da minha infância para mim o primeiro —
Ali o tumulto cego confundia
O escuro da noite e o brilho do dia
Ali era a fúria o clamor o não-dito
Ali o confuso onde tudo irrompia
Ali era o Kaos onde tudo nascia
in O Nome das Coisas, 1977
mariajosédomingues