José Saramago: The God of the
Labyrinth
A construção de um labirinto intertextual foi conseguida
intencionalmente pelo autor. Navegar nesse labirinto em busca dos subtextos é um desafio.
O «autor-narrador» saramaguiano é o verdadeiro deus
desse labirinto.
Fora da «gramática da narrativa», Saramago afirmou perentoriamente
«Não, Eu não me escondo por detrás do narrador. Saramago é o autor e é ele que
conta o que conta». Mais tarde, em entrevista, a 9 de agosto de 1996, explica:
Eu acho que isso a que decidimos chamar «narrador
omnisciente» não é senão o autor, que dispõe de uma experiência pessoal, assim
como de uma série de mecanismos que servem para exprimir essa voz, e escolhe o
adequado de forma espontânea, sem premeditação[1].
Saramago assume a sua escrita como cidadão
interveniente com o objetivo do compromisso e da cidadania: «A minha literatura
reflete, de alguma forma, as posturas que ideologicamente assumo, mas não é um
panfleto» (ibidem, p.364).
O compromisso é ideológico e político:
«Creio que de todos os meus livros se pode fazer uma
leitura política, ainda que não seja esse o objetivo de nenhum deles. É que,
sendo eu um homem político e ideologicamente muito definido, seria impossível
que as minhas ideias ou as minhas preocupações não passassem por aquilo que eu
faço, mesmo que o tema não seja obviamente político» (ibidem, p.365).
É evidente que pode fazer-se uma leitura política dos
livros e foi exatamente essa leitura política que Saramago fez das ODES de Ricardo Reis e da restante obra
de Fernando Pessoa, em O Ano da Morte de
Ricardo Reis. Tenhamos na devida conta o fulcro do título da obra: «o ano».
Segue-se o localizador temporal: «da morte de Ricardo Reis». Tão importante como
a personagem é o contexto político desse ano de 1936, para o qual Saramago
elaborou, a partir de pesquisa, uma agenda com os principais factos políticos,
depositada na Biblioteca Nacional com o original da obra.
Essa época histórica portuguesa tem no poder Salazar,
Presidente do Conselho desde 1932, e como regimento a Constituição de 1933 com
as bases do Estado Novo. A direita está no poder e a esquerda está desativada
pelo regime. Assim, Saramago parece ter construído a personagem Marcenda[2],
aquela que está destinada a murchar virgem, com a mão direita atuante e a
esquerda paralisada, incapaz de lutar pelo amor, pois será sempre a filha conformada
do Dr. Sampaio, nacionalista salazarista. Rematando, um país sem contraditório
de direita e esquerda, isto é, sem democracia, não pode avançar politicamente e
em todos os sentidos que do político decorrem. Será um país conformado com a
sua doença, neste caso, a ditadura da direita, que durou cerca de cinquenta
anos.
O referido ano de 1936 apresenta-se pleno de
acontecimentos políticos terríveis à escala mundial. A isso, ironicamente,
Saramago contrapõe a alienação política presente nas odes de Ricardo Reis, em
especial, naquela que abre a epígrafe: «Sábio é aquele que se contenta com o
espetáculo do mundo» (ode datada de 19-6-1914). Isto é, o mundo está a desabar
entre a primeira guerra mundial e o começo da segunda e aquele verso alienante
a martelar.
Se o labirinto é temporal, também o é geográfico na
Lisboa de Eça, de Cesário, de Pessoa e de Saramago. Camões é marco
incontornável na sua praça e no miradouro de Santa Catarina, na figura do
Adamastor, «mostrengo» que une Pessoa a Camões.
Ligada à deambulação lisboeta de Reis contextualiza-se
o labirinto intertextual, nela navegando textos de Camões, Cesário Verde e
Fernando Pessoa e referências ainda a Ribeiro Chiado e a Eça de Queirós.
A intertextualidade assumida é uma caraterística do pós-modernismo,
assim como a reescrita de partes de
obras de outros autores.
A obra começa e acaba com a reescrita do verso 3º, da
estrofe 20, do canto III, de Os Lusíadas:
Eis aqui, quase
cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a Terra se acaba e o Mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano.
[...]
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a Terra se acaba e o Mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano.
[...]
Vejamos a reescrita do verso na obra.
Na primeira frase da obra, lê-se «Aqui o mar acaba e a terra principia» - o Highland Brigade, vindo
de Buenos Aires rumo a Londres, atraca no cais de Alcântara, com chuva sobre a
cidade pálida e silenciosa de um domingo quieto.
Pode ler-se o ligeiro tom de paródia – outra característica do pós-modernismo – na afirmação «o
mar acaba», considerando a inversão da posição da água, que, no momento do
desembarque, cai do céu em forma de chuva, turvando o rio e alagando a lezíria,
entristecendo a paisagem. Acrescente-se: a paisagem estado de alma a lembrar a
escrita de Pessoa. Portugal era um país triste dominado pela ditadura do Estado
Novo. E a obra tem essa dimensão política.
O tom de paródia, mais ou menos contido, atravessa a
obra numa iconoclastia textual de Camões, mas, sobretudo, de Pessoa.
Na última frase da obra, lê-se o mesmo
verso camoniano reescrito: «Aqui,
onde o mar se acabou e a terra espera», depois de as duas personagens
saramaguianas partirem para o cemitério dos Prazeres.
A paródia nessa parte final da obra faz o leitor
esboçar o sorriso ao deparar-se com a decisão mortal de Ricardo Reis e com o
diálogo entre ele e Fernando Pessoa, seu companheiro espetral.
Sorrimos na hora da morte das duas personagens,
perante os objetos a levar ou não para a tumba: o chapéu de Reis, lembrado por
Pessoa; o livro, The god of the labyrinth,
que atravessa a obra labiríntica e que Reis confessa não ter lido - «Ter um
livro pra ler/ E não o fazer» - e, levando-o consigo, deixa «o mundo aliviado
de um enigma». Curioso, no momento em que o abre, vê «uns sinais
incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja» («Livros são papéis
pintados com tinta»). Os versos transcritos pertencem ao poema Liberdade de Fernando Pessoa. E mais se
aplicam os primeiros versos do referido poema «Ai que prazer/Não cumprir
um dever» ao não cumprimento do dever
para com Lídia - «Devia ficar aqui à espera de Lídia. Eu sei que devia.». Contudo,
parte com Pessoa para o cemitério - «Então vamos, disse. [...] Vamos, disse
Ricardo Reis». Duvido que o «vamos» repetido pelas personagens seja inocente,
atendendo à conotação da forma verbal, para quem conhece a letra do
hino da Mocidade Portuguesa, que contém essa forma verbal quatro vezes.
O facto de certos marxistas considerarem Pessoa
adepto do Estado Novo tem levado outros estudiosos ao contraditório através da
publicação de textos de Pessoa críticos a tal regime, nomeadamente a antologia de
Textos de Fernando Pessoa Sobre o
Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar Fernando Pessoa, edição de José
Barreto, em 2015.
Sente-se no decurso da obra o confronto
de duas personalidades, Saramago e Pessoa, na certeza de que o autor comanda a personagem.
Corajoso, não receia os pessoanos. Construirá o labirinto do qual será rei e
senhor, isto é, o verdadeiro The God of the Labyrinth[3].
Maria José Domingues
.
[1] In José Saramago nas suas palavras, edição
e seleção de Fernando Gómez Aguilera, Caminho, 2010, p.237-238.
[2] A
palavra «Marcenda» inicia o décimo verso da ode «Saudoso já deste verão que
vejo», com o sentido gerundivo, de ‘murchante’ - «E colho a rosa porque
a sorte manda./Marcenda, guardo-a». Para um leitor desprevenido, «Marcenda» pode
parecer um vocativo, que, no caso, seria um nome do género feminino.
[3]
Influência assumida por Saramago, na
conferência «Algumas provas da existência real de Herbert Quain», da obra de
Jorge Luis Borges (1899-1986), Examen de
la obra de Herbert Quain, da qual se transcreve o início: «Quain ha muerto en Roscommon; he
comprobado sin asombro que el Suplemento Literario del Times apenas
le depara media columna de piedad necrológica, en la que no hay epíteto
laudatorio que no esté corregido (o seriamente amonestado) por un adverbio. El
Spectator, en su número pertinente, es sin duda menos la Quain ha
muerto en Roscommon; he
comprobado sin asombro que el Suplemento Literario del Times apenas
le depara media columna de piedad necrológica, en la que no hay epíteto
laudatorio que no esté corregido (o seriamente amonestado) por un adverbio. El
Spectator, en su número pertinente, es sin duda menos lacónico y tal vez más
cordial, pero equipara el primer libro de Quain The God of the Labyrinth
a uno de Mrs. Agatha Christie y otros a los de Gertrude Stein: evocaciones que
nadie juzgará inevitables y que no hubieran alegrado al difunto.cónico y tal
vez más cordial, pero equipara el primer libro de Quain The God of the
Labyrinth a uno de Mrs. Agatha Christie y otros a los de Gertrude Stein:
evocaciones que nadie juzgará inevitables y que no hubieran alegrado al difunto»
(http://www.literatura.us/borges/examen.html).