Feminina de Mário de Sá Carneiro
«Mas antes,
fui buscar o poema do Mário Sá-Carneiro.
Pensa no que
pensaria ele acerca da mulher... E qual a aproximação a FPessoa... Fica no ar a
ideia para ambas.
Guida»
«Feminina é uma peça para um actor»[1]
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Mário
de Sá-Carneiro encontrava-se em Paris, em
desespero monetário, como se pode ler nas cartas enviadas ao amigo Pessoa,
em 1916. Acresce a «Zoina» em progressão suicida.
Fernando
Pessoa recebe do amigo Sá-Carneiro uma carta de Paris, datada de 16 de
Fevereiro de 1916, a dois meses do suicídio. Nela, o autor revela-se duplicado
no Mário paúlico de 1913, que não quer encontrar e que renega - ainda que ele
tenha sido «mais feliz…pois acreditava ainda na sua desolação… Enquanto que
hoje…» - para se apresentar como o Sá-Carneiro de 1916 a entrar no café Riche,
no qual existe sempre o mesmo homem a ler embebidamente o Temps – esse
homem é uno e estará eternamente no café a ler o jornal.
Porém ele, Sá-Carneiro, à data, apresenta «sem literatura
má, sem paulismo […] a verdade nua e crua», no poema enviado e incluído no
texto dessa mesma carta[2]:
«Quando
eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa
E eu quero por força ir de burro!»
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa
E eu quero por força ir de burro!»
Refere um outro poema a que chama «um soneto mau», esse vai à parte[3]. Não está integrado na carta como os outros, e isso faz toda a diferença, por não entrar no ato linguístico de fala à distância.
Envia
ainda outro poema, que apresenta como «um poema irritantíssimo, “Feminina”»,
que começara na noite anterior quando lhe roubaram o chapéu-de-chuva.
Antecede-o a expressão:
«Pano
de amostra:
Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.
Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer «potins» - muito entretida.
Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.
Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais
esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...
Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar...»
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O poema acaba aí e a carta
continua: «Como você vê - isto promete, hein? Quando arranjar por completo o
poema, enviar-lho-ei. Mas vá-me dizendo as suas impressões». Sabe-se o quão
importantes eram para ele as impressões pessoanas. Lê-se na carta de 13 de Maio
de 1913: «Escrevo uma coisa e logo tenho a ânsia de saber o que o meu amigo
pensa dela. É um entusiasmo, uma ansiedade… tenha paciência».
Comentário: Essa carta e os
poemas enviados são reveladores da angústia autêntica, embora poeticamente
encenada. Enquanto o destinatário Pessoa queria ser tudo e criava heterónimos
para organizar mentalmente esse tudo literário, Mário de Sá-Carneiro, no ato de
“outrar-se”, duplica-se: vivo/morto, homem/mulher, «meu intento todo loiro»/ «o
amante loiro/ o rapaz gordo e feio (ele mesmo, visto de fora). Sobre o poema Feminina,
considero que os problemas financeiros do autor poderiam estar na base
motivadora do poema, dentro da lógica masculina de que seria mais fácil a uma
mulher de vaudeville conseguir viver em Paris sem dinheiro do que a ele,
descrito no poema como «um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...», que
sabemos desesperado por falta de dinheiro para aguentar a vida de artista em
Paris.
Fernando Cabral Martins designa
a referida carta, de 16 de Fevereiro de 1916, de «carta-poema». Sobre o
primeiro poema, ele identifica o eu literário que tem «na carta-poema um nome:
Sá-Carneiro». E considera o poema comparável a «um acto de fala», embora seja
«um acto de escrita». Para concluir que é «um acto performativo, situado no
momento preciso e destinado a obter um efeito». O poema está dentro de uma
confidência sobre o estado de espírito do destinador, todavia, para não
assustar demasiado o amigo, dá-lhe um tom carnavalesco e um ritmo acelerado. Mas
a História veio confirmar que o poema Fim era «um anúncio da sua própria
morte», em desvalorização, em celebração irónica.
Segue-se o «pano de amostra»:
Feminina. Continuando com Fernando Cabral Martins, ele escreve que, na
carta, «ao interromper segunda vez a corrente confessional, num ritmo agora
mais lento, mas tão livre quanto o de Fim, é como se passasse da
melancolia para a representação de um vaudeville um pouco sórdido. A
seguir a carta pode passar às informações miúdas próprias das cartas de longe,
como se não se tivesse passado nada. E, de certo modo, há um efeito último que
se produz, não sobre o destinatário, mas sobre o destinador: a carta a Pessoa,
desenvolvendo-se em rápidos “Scenários de mutação” num music-hall de papel, da
pirueta circense à pequena comédia de costumes, funciona como um processo
catártico. O instante fixa-se, a carta transporta à distância um gesto. A
narrativização do lirismo, a liricização da narrativa, a confessionalidade do
fingimento e a pose de sinceridade conjugam-se na construção do texto da carta,
que, ao mesmo tempo, é e não é consciente de si como literária».
Acerca dos dois poemas
inseridos no texto da carta em questão a Fernando Pessoa, Cabral Martins
considera-os «textos no futuro». E considera a carta, texto do presente, um
texto múltiplo fixador do instante.
O poema «Feminina tem
servido para fundamentar o diagnóstico psicanalítico de um Sá-Carneiro
homossexual, ou, como se impõe neste caso, transsexual e até esquizofrénico. Mas,
de facto, é a tentativa de construção do poema dramático» com dois eus, um
masculino e um feminino, subordinada à expressão de alguém que sonha: “Eu
queria ser mulher” - «sigla anafórica que cria sucessivas imagens da mulher
como ela é na fantasia do eu masculino. Mas abre também para as imagens que
essa mulher tem dele – ou que ele pensa que ela tem dele». Nomeadamente a «do
rapaz gordo e feio de modos extravagantes», a auto-imagem em distanciamento do Aquele
Outro - «Esfinge gorda».
Estamos perante génios literários, os dois amigos, em
diálogo à distância, puxando um pelo outro na Arte literária.
E Pessoa viria a escrever,
após o suicídio, no poema a Sá-Carneiro: «Como éramos só um, falando!
Nós/ Éramos como um diálogo numa alma.»
David
Mourão Ferreira compara os dois amigos a Ícaro e Dédalo e também a dois
pastores numa écloga, dialogando sobre as suas conceções literárias.
Maria
José Domingues
[1] MARTINS, Fernando Cabral, O Modernismo em Mário de
Sá-Carneiro, Editorial Presença, 1997 – esta obra forneceu as citações
sobre o assunto abordado.
[2] Esse poema viria a ser intitulado Fim, posteriormente
à sua morte.
Quando chego
- o piano estala agoiro,
E medem-se os
convivas logo, inquietos –
Alargam-se as
paredes, sobem tectos -
Paira um luxo
de Adaga em mão de Moiro.
Meu intento,
porém, é todo loiro
E a cor de
rosa, insinuando afectos.
Mas ninguém
se me expande... Os meus dilectos
Frenesis
ninguém brilha! Excesso de Oiro.
Meu Dislate a
conventos longos orça.
Pra correr
minha Zoina, aquém e além,
Só mística,
de alada, esguia corça...
- Quem me
convida mesmo não faz bem:
Intruso ainda
– quando, à viva força,
A sua casa
me levasse alguém.