Releio Os Maias de Eça de Queirós em
constrangimento pelo modo como as personagens femininas são tratadas. E penso
no tempo imenso decorrido até ao reconhecimento dos direitos das mulheres.
O movimento fraterno e igualitário da revolução
francesa não conseguiu dar o direito de cidadania à mulher. Uma luta árdua foi
necessária para que as sufragistas conseguissem o direito ao voto. O século XX
foi vendo aos poucos a mulher europeia alcançar os seus direitos.
Mas pensemos na vida familiar e literária de Eça de
Queirós e nas razões que o terão levado a criar aquelas personagens femininas e
não outras.
Do ponto de vista familiar, Eça tinha razão de queixa das mulheres, pois, sabendo-se quem era sua mãe, ele foi registado como
filho de seu pai e de mãe incógnita, a qual viria a casar com seu pai, aos 4
anos de Eça, mas nem por isso o assumiu e criou.
Do ponto de vista literário, ao criar as personagens
femininas, seguiu a escola realista/naturalista, de acordo com as ideias
expressas nas Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, em 1871, ao
apresentar a nova corrente estético-literária: "O que queremos nós com o
Realismo? Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por
persistir em se educar segundo o passado; queremos fazer a fotografia, ia quase
a dizer, a caricatura do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico,
explorador, aristocrático, etc., e, apontando-o ao escárnio, à gargalhada, ao desprezo
do mundo moderno e democrático - preparar a sua ruína". A ser assim,
entende-se que seria mesmo o constrangimento que ele queria provocar, para que
a condição feminina fosse melhorada. Contudo, duvido que os homens o tenham
compreendido deste modo. Durante a releitura, pensei com frequência que a obra
tinha sido pensada e criada por homem para homem. É evidente que nada disto reduz
o valor literário da obra.
Do
ponto de vista histórico, vivia-se em monarquia e a nobreza ditava a carta comportamental.
A burguesia em expansão pretendia atingir o estatuto daquela classe. As
burguesas procuravam casar com titulares. A desocupação das mulheres
expandia-se à medida que a classe média crescia, pois as jovens não estudavam
nas universidades e as mulheres das classes abastadas não tinham profissão. As
personagens femininas da obra, apresentadas de acordo com a sociedade em que se
inserem, revelam a desocupação, a coqueteria, a vaidade, a arte de agradar aos
homens e o consequente adultério.
Nessa arte de não fazer nada de útil, não suscitam respeito. E pode afirmar-se que existe na obra falta de respeito pelas mulheres, apenas com uma exceção clara: a tia Fanny, personagem secundária, irlandesa, católica, culta e racional, muito admirada por Afonso da Maia a quem ela ensinara inglês. A questão da educação é uma das vertentes importantes na obra.
Nessa arte de não fazer nada de útil, não suscitam respeito. E pode afirmar-se que existe na obra falta de respeito pelas mulheres, apenas com uma exceção clara: a tia Fanny, personagem secundária, irlandesa, católica, culta e racional, muito admirada por Afonso da Maia a quem ela ensinara inglês. A questão da educação é uma das vertentes importantes na obra.
Sobre
a "aculturação" da mulher, assiste-se a diálogos, nos quais João da Ega defende o
princípio popular, que ouvi repetidamente na minha infância: «mulher que fala
latim e burra que diz im retira-te de mim», registado por escrito em Carta
de Guia de Casados de D. Francisco Manuel de Mello.
Assim,
em casa dos Gouvarinhos, acabado o jantar, «os homens, sós, acenderam os seus
charutos» e Ega conversava com o anfitrião sobre mulheres, a propósito da
secretária da Legação da Rússia, fisicamente deliciosa para Ega, enquanto o
conde lhe gabava o espírito e a instrução. «Isso, segundo o Ega, prejudicava-a:
porque o dever da mulher era primeiro ser bela, e depois ser estúpida... O
conde afirmou logo com exuberância que não gostava também de literatas; sim,
decerto o lugar da mulher era junto do berço, não na biblioteca...». Todavia,
considerava agradável que uma senhora pudesse conversar sobre coisas amenas,
como o artigo de uma revista, um livro leve como os de Feuillet. Enfim uma
senhora devia ser prendada e, nesse momento, chama Sousa Neto à conversa, que,
como é de sua postura, concorda:
«Neto, grave, murmurou:
— Uma senhora, sobretudo quando ainda é nova, deve ter algumas prendas...
Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo com prendas literárias, sabendo dizer coisas sobre o Sr. Thiers, ou sobre o Sr. Zola, é um monstro, um fenómeno que cumpria recolher a uma companhia de cavalinhos, como se soubesse trabalhar nas argolas. A mulher só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem» (pp. 397-398).
— Uma senhora, sobretudo quando ainda é nova, deve ter algumas prendas...
Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo com prendas literárias, sabendo dizer coisas sobre o Sr. Thiers, ou sobre o Sr. Zola, é um monstro, um fenómeno que cumpria recolher a uma companhia de cavalinhos, como se soubesse trabalhar nas argolas. A mulher só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem» (pp. 397-398).
Muito
mais se poderia citar da obra, para comprovar a denúncia eciana da falta de consideração e
respeito pela mulher na sociedade lisboeta.
Decorreriam ainda muitos anos de luta feminina para a conquista da igualdade
de género — quase um século até à Convenção sobre a Eliminação de todas
as Formas de Discriminação contra as Mulheres, conhecida por Carta Internacional
dos Direitos das Mulheres, promulgada em 18 de Dezembro de 1979, no âmbito das
Nações Unidas.
Maria José Domingues