quarta-feira, 15 de maio de 2019

As Cidades Invisíveis de Italo Calvino - uma tolice ou um jogo?





Perdida n'As Cidades Invisíveis de Italo Calvino, tento agarrar o fio para o prender à memória. Essa obra enigmática deixa o leitor perplexo em labirinto de cidades.
Ao entrar no grupo de intelectuais de l’ Ouvroir de littérature potentielle, Calvino aceitou um projeto de escrita subordinado a «contraintes»[1] de construção textual.
Quando o leitor de As Cidades Invisíveis toma conhecimento da lista desses constrangimentos, conclui que Calvino, usando a liberdade de escolha, seguiu algumas delas, ainda que a seu modo. Leia-se a seguinte contrainte:
La forme dite des « 99 notes préparatoires » se situe entre le poème et l’essai, s’emparant d’un sujet donné et tentant d’en épuiser les potentialités par un jeu polyphonique.
Elle n’est pas « contrainte» à proprement parler mais a beaucoup à voir avec la potentialité. L’obligation d’écrire quatre-vingt-dix-neuf phrases sur un thème précis la rapproche ainsi d’une tentative d’épuisement. Il faut ensuite trouver une façon d’ordonner (ou désordonner) ses notes. Cela dit, rien n’empêche d’utiliser, localement, telle ou telle contrainte en jouant, par exemple, de la numérotation
[2].

Analisando a obra de acordo com a citação, verifica-se que Calvino projetou a obra em 9 capítulos com 11 temas, agrupadores de cidades, obtendo o número 99 (11x9=99).
As cidades são 55, distribuídas pelos nove capítulos, em grupos de 5 do segundo ao oitavo e, no primeiro e nono, em grupos de 10 - (10+5+5+5+5+5+5+5+10). Recorde-se a propósito do somatório de cidades a seguinte «contrainte oulipienne»: «Un hyper-roman est une «machine à multiplier les récits». De facto, as cidades sucedem-se velozmente em textos curtos[3]. Acontece que depois da leitura, torna-se difícil saber qual o nome de tal ou tal cidade.
Excetuando a especularidade do primeiro e do nono capítulo com 10 cidades, os restantes capítulos organizam-se segundo o modelo 5,4,3,2,1, numeração correspondente ao número de entrada da cidade por tema. A partir do terceiro capítulo até ao nono, a cidade 5 sai e entra a 1.
É evidente que esta organização numérica ao gosto oulipiano é um jogo textual gerador de mal-estar para o leitor de romances ditos ‘normais’, isto é, dentro das normas da inserção dos momentos de pausa e de avanço devidamente interligados numa narrativa.
Contudo, o autor não se ficou pela orgânica e pela distribuição das descrições das cidades invisíveis, em textos que intitulou de apólogos e de petits-poèmes-en-prose.  Esses pequenos 55 textos estão enquadrados por uma narrativa protagonizada pelo Imperador Kublai Kan e Marco Polo. Esses dois nomes reenviam o leitor para a obra das viagens de Marco Polo, Il Milione, do séc. XIII, dentro do jogo polifónico previsto pelo Oulipo. As vozes de antanho cruzam-se com o pensamento do autor e, em polifonia, cantam a uma só voz, ainda que em diálogos.
A moldura dos nove capítulos é construída por uma narrativa de 18 textos em itálico, colocados um no princípio e outro no fim de cada capítulo. Dessas molduras extrairei excertos que considero notáveis.
Sobre o valor da comunicação:
·         Só nos relatos de Marco Polo conseguia Kublai Kan discernir, através das muralhas e das torres destinadas a ruir, a filigrana de um desenho tão fino que escapasse ao ruir das térmitas (21[4]).
Sobre o valor da comunicação em linguagem não verbal:
·         Mas o que tornava preciosos a Kublai todos os factos ou notícias referidos pelo seu inarticulado informador era o espaço que ficava à volta deles, um vazio não preenchido por palavras. As descrições das cidades visitadas por Marco Polo tinham esse dom: podia andar-se por elas com o pensamento, nelas podíamos perder-nos, parar a apanhar o fresco, ou fugir a correr (51).
O arquétipo de cidade:
·   - Contudo, eu construí na minha mente um modelo de cidade de que deveriam deduzir-se todas as cidades possíveis – disse Kublai. [...]
– Também pensei num modelo de cidade de que deduzo todas as outras – respondeu Marco (81).
Sobre a leveza (primeiro tema de Seis propostas para o próximo milénio (1985) de Italo Calvino):
·         – Há uma coisa que tu não sabes – acrescentou Kan. A Lua reconhecida deu à cidade de Lalage um privilégio mais raro: o de crescer em leveza (86).
O valor da parte no todo:
Polo responde: – Sem pedras não há arco (95).
Sobre a palavra apagadora de memórias:
·         – As imagens da memória, depois de fixadas com as palavras, apagam-se – disse Polo. – Talvez eu tenha de perder Veneza toda de uma vez, se falar dela. Ou talvez, ao falar de outras cidades, já venha a perdê-la aos poucos (100).
Sobre o real e a ficção:
·         Polo – Talvez do mundo só tenha restado um terreno vazio coberto de imundícies, e o jardim suspenso do palácio do Grão Kan. São as nossas pálpebras que os separam, mas não se sabe qual está dentro e qual está fora (116).
Sobre a personagem como criação/recriação do autor («Enquanto signo narrativo, a personagem é sujeita a procedimentos de estruturação, que determinam a sua funcionalidade e peso específico na economia do relato»[5]):
·         Polo – E de que os carregadores, os calceteiros, os varredores, as cozinheiras que limpam as vísceras das galinhas, as lavadeiras ajoelhadas sobre a pedra, as mães de família que mexem o arroz aleitando os recém-nascidos, só existam porque nós pensamos neles.
Kublai – Para dizer a verdade, eu nunca penso neles.
Polo – Então não existem.
Kublai – Essa conjetura não me parece que nos convenha. Sem eles nunca poderíamos ficar a balançar encasulados nas nossas camas de rede.
Polo – Então a hipótese é de excluir. Portanto será verdadeira a outra: de que existam eles e não nós.
Kublai: - Assim demonstrámos que, se nós existíssemos, não existiríamos.
Polo – De facto, aqui estamos (127).
Sobre a superfície e a profundidade:
·         O Grão Kan tentava concentrar-se no jogo: mas agora era o porquê do jogo que lhe escapava. [...] Kublai chegara à operação extrema: a conquista definitiva, de que os multiformes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a um pedaço de madeira aplainada.
Então Marco Polo disse: - O teu tabuleiro, Sire, é um conjunto de duas madeiras incrustadas: ébano e roble. A casa em que se fixa o teu olhar iluminado foi cortada de uma camada de tronco que cresceu num ano de seca: vês como estão dispostos os veios? Nota-se aqui um nódulo apenas esboçado: um rebento que tentou brotar num dia de primavera precoce, mas a geada noturna obrigou-o a desistir. [...] Eis aqui um poro mais grosso: talvez tenha sido o ninho de uma larva [...] de uma lagarta que roeu as folhas, e foi por isso que escolheram esta árvore para ser abatida... Esta borda foi talhada pelo marceneiro com a goiva para aderir ao quadrado contíguo, mais saliente...
A quantidade de coisas que se podiam ler num bocadinho de madeira liso e vazio abismava Kublai; e Marco Polo já estava a falar dos bosques de ébano, das jangadas de troncos que desciam os rios, dos cais, das mulheres às janelas... (141).
A retenção informativa do ouvinte:
·         – Eu falo, falo – diz Marco -, mas quem me ouve só fixa as palavras que deseja. [...] Quem comanda o conto não é a voz é o ouvido (145).
As versões dos relatos de Marco e aquela que perdurará, apresentada em prolepse:
·         E outra ainda a que poderei ditar em tardia idade, se fosse feito prisioneiro pelos piratas genoveses e posto a ferros na mesma cela com um escrivão de romances de aventuras (145).
O inferno:
·         Diz: – Tudo é inútil, se o último local de desembarque tiver de ser a cidade infernal, e é lá no fundo que, numa espiral cada vez mais apertada, nos chupa a corrente.
E Polo: - O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar (169-170).

Conclusão:
Parece-me evidente a necessidade de ter presente a obra do veneziano Marco Polo (1298) para um estudo comparativo. Folheando-a, verifica-se a similaridade no texto curto descritivo das muitas cidades e regiões visitadas por Marco. Este teve como relator das suas viagens Rustichello de Pisa, autor de romances de cavalaria, aproveitando o tempo de cativeiro.
Calvino apodera-se dos protagonistas da obra de Polo e reconstrói-os a seu modo. Os extraordinários diálogos desenrolam-se com um tabuleiro de xadrez de permeio. Os dois são jogadores dependentes das jogadas do parceiro, no jogo e no diálogo.
Diria que o pano de fundo da obra As Cidades Invisíveis é o jogo, mas o jogo textual, construtor de literatura.

Maria José Domingues



[1] «Exercice de style  Exercices de style est le titre d’un livre de R. Q. À partir d’une histoire aux péripéties insignifiantes, il a proposé quatre-vingt-dix-neuf récits, différents par leur seul “ style ” : certains sont farcis d’anglicismes, d’autres écrits en alexandrins, d’autres enfin sont de véritables saynètes de théâtre» (https://www.oulipo.net/fr/une-liste-de-contraintes-oulipiennes - consulta a 14 de maio 2019.
[3] Un À supposer… est un texte en prose (mais peut-être un poème en prose) composé d’une phrase unique très développée, initiée par la formule : « À supposer qu’on me demande ici de… ».  Pas de ponctuation forte au milieu de la phrase, qui laisserait entendre qu’il y a plusieurs phrases. Un À supposer… sérieux compte au moins 1 000 signes (200 mots). L’origine est moins proustienne que mallarméenne : maints sonnets de Mallarmé sont clairement des défis à n’y faire qu’une seule phrase. (idem, ibidem).


[4] Seguiu-se a obra As cidades Invisíveis  de Italo Calvino, Coleção Essencial, Leya, RTP, 2015.
[5] Reis, Carlos, Dicionário da narratologia, 1987, p.308.

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