sexta-feira, 13 de março de 2015

AMOR DE Perdição - uma questão de género: Narratário/ Narratária



AMOR DE Perdição - uma questão de género: Narratário/ Narratária
Por Maria José Domingues

Reler Amor de Perdição foi um exercício complexo, em confronto com a leitura de superfície da adolescência.
A obra não se cinge à história dos amores de Teresa e Simão. Nela está inscrito o real de Camilo, que disso faz jus. Assim, real e ficção entrelaçam-se num registo memorialista explícito no subtítulo, Memórias de uma família, que o autor afirma ser a sua, ainda que tenha usado o determinante indefinido a anteceder família.
Dois tempos se cruzam no romance. O tempo da narrativa decorre entre 1779, ano situador de Domingos Botelho como juiz de Cascais, e 1807. Dentro deste período, está o tempo da história dos amores de Teresa e Simão, desde as férias grandes de 1802 até 1807, ano em que Simão partiu para a Índia e o par amoroso morreu. O tempo da narrativa cruza-se com o tempo do discurso narrativo construído por Camilo em quinze dias do ano de 1861, enquanto prisioneiro da cadeia da Relação do Porto. Dois tempos politicamente diversos pelo triunfo do liberalismo e do constitucionalismo liberal.

Pensando na sedução do romance do século XIX e procurando uma justificação, talvez a tenha encontrado no artigo de Barcellos, «Masculinidade e modernidade em Camilo Castelo Branco»[1].
De facto, como afirma Barcellos, Camilo assume conscientemente um narrador amalgamado ao autor, logo, masculino, com um ponto de vista masculino, numa narrativa que se oferece às leitoras. Uma oferta masculina para um narratário feminino veicula um desejo de agrado e conquista, muito embora a dedicatória de Amor de Perdição se dirija a Fontes Pereira de Melo, com texto justificativo pela oferta.
Na Introdução, os vocábulos leitor, leitora aparecem, uma primeira vez, a par, para, depois, surgir no penúltimo parágrafo a definição da mulher, considerada pelo autor a leitora da sua obra, «a carinhosa amiga de todos os infelizes», e para, no último parágrafo, dissertar sobre as reações femininas à leitura da obra: as lágrimas de compaixão e o ódio pelos homens «feitos bárbaros, em nome da sua honra». Temos, por conseguinte, em Amor de Perdição, um romance do género masculino, endereçado preferencialmente ao género feminino.
Esse acontecimento literário surge como natural, tendo em conta a cultura burguesa da época numa sociedade estruturada com base na cidadania masculina, que dava ao homem acesso à política, à finança, à universidade e o instituía como ‘cabeça de casal’, podendo nessa condição comportar-se como um ditador na defesa de princípios ou da propriedade. São exemplos disso os dois chefes de família: Domingos Botelho e Tadeu de Albuquerque.
Por sua vez, à mulher burguesa são negados os direitos de escolha, de acesso à universidade, de trabalho remunerado, nomeadamente o direito de se apresentar como escritora. É educada para ser a flor do lar e da sociedade.
Confronte-se o acima afirmado com a apresentação dos filhos de Domingos Botelho: «Manuel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos, e frequenta o segundo ano jurídico. Simão, que tem quinze anos, estuda humanidades em Coimbra. As três meninas são o prazer e a vida toda do coração de sua mãe». Enquanto eles constroem o saber para exercerem uma profissão, elas são o ‘jardim celeste’ da mãe.
Conclui-se que a mulher da média e alta sociedade teria tempo suficiente para a leitura de novelas e romances. Eis então o público a quem a obra se destina preferencialmente.
Sendo a obra literária encarada naturalmente como masculina, o autor não precisaria de trabalhar cuidadosamente esse género, sentido como natural. Quem teria de ser cuidadosamente trabalhado e chamado à colação seria o género feminino, sobre o qual o narrador/autor exercia a sedução, considerando a mulher burguesa a ‘narratária’ por excelência.

Esta era ainda a perspetiva de Camilo para a receção da sua obra, em 1861, num tempo em que  Madame Bovary de Flaubert já era obra lida desde 1856, na qual o autor apresenta o adultério e o suicídio de Emma por culpa da educação e da leitura excessiva de romances e novelas sentimentais. Com problemática afim, em 1878, Eça de Queirós publica O Primo Basílio. Efetivamente, o romance sentimental evoluía para o realismo, escola que pretendia pintar a realidade com arte «bela, justa e verdadeira», ensinando e corrigindo a sociedade, conforme Eça defendera na conferência «O Realismo como nova expressão da arte», em 12 de Junho de 1871.
 

Março, mês da MULHER




[1] «Masculinidade e modernidade em Camilo Castelo Branco», in Leituras do Desejo em Camilo Castelo Branco, organização de Sérgio Guimarães de Sousa, José Cândido de Oliveira Martins,               pp. 97-114, Opera Omnia, Guimarães, 2010.