sexta-feira, 4 de abril de 2014

Santo António e o responso, em Vidas Vencidas de Maria Ondina Braga

Responsos


O texto «Atrás de uma montanha há sempre outra» (Vidas Vencidas, Maria Ondina Braga)  começa com a grande devoção do pai da narradora a Santo António, festejado, no dia 13 de Junho, com um trono em forma de gruta, velas de cera, cravos e manjericão. Sua mãe também trouxera um, «de cruz em punho e o Menino sentado no livro aberto, o que significava boda segura, satisfação». Porém, o grande destaque vai para o poder de «fazer aparecer objectos perdidos e evitar desgraças que se adivinhavam, bastava rezar-se-lhe o responso:
Se milagres desejais
 Recorrei a Santo António
 Vereis fugir o demónio
 e as tentações infernais».  
E mais adiante, cita o pedido dos pescadores: 
«no auge do furacão
cede o mar embravecido...».
Os versos citados pela autora pertencem ao Ofício Rítmico em honra de Santo Antónia, datado de 1233, e cantado ainda hoje. Iniciado pela quadra que Maria Ondina transcreve, continua assim:

«Recupera-se o perdido./ Rompe-se a dura prisão,/ e no auge do furacão/ cede o mar embravecido./
Pela sua intercessão,/ foge a peste, o erro, a morte,/ O fraco torna-se forte, /e torna-se o enfermo são./
Recupera-se o perdido. /Rompe-se a dura prisão,/ e no auge do furacão/ cede o mar e mbravecido./
Todos os males humanos /se moderam, se retiram,/
Digam-no aqueles que o viram, /e digam-no os paduanos./
Recupera-se o perdido. /Rompe-se a dura prisão,/ e no auge do furacão / cede o mar embravecido./
Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
Recupera-se o perdido./ Rompe-se a dura prisão,/ e no auge do furacão /cede o mar embravecido./
Rogai por nós, bem-aventurado António / Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.»

Pelos vistos, na casa da narradora, em Braga, o mais usual, perante a perda da chave, dos óculos, da caixa de pastilhas, era recorrer a São Tomaz de Villanueva, numa reza rápida:
 «São Tomaz de Villanueva 
Foste bispo e arcebispo
 Permiti que me apareça (explicava-se)
 Pelas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo»
E tudo aparecia. Contudo, ela não conhecia o santo, até ao posterior encontro da imagem no altar-mor da igreja do Pópulo.
 Lendo Vidas Vencidas, agora, em 2014, e conversando sobre o responso, uma amiga disse-me que conhecia uma senhora de Adaúfe, Braga, que fazia aparecer as coisas perdidas através de responso. Pedi-lhe que mo arranjasse. Trouxe-mo hoje. E qual não foi o meu espanto ao verificar que em vez de S. Tomás de Villanueva se tinha colocado Santo António de Lisboa, embora este não tenha sido nem bispo nem arcebispo. Reza assim:
Santo António de Lisboa
Foste bispo e arcebispo
Pelo poder de Jesus Cristo
Ajudai-me a aparecer isto

Pelo poder de Deus
E da Virgem Maria
Rezo um pai-nosso
E uma ave-maria

Na minha infância, quando em minha casa se perdia algo de valioso, minha mãe mandava-me a casa da Teresinha, para que ela dissesse o responso a Santo António. Muito satisfeita, eu corria para casa da nossa amiga a fazer-lhe o pedido. Ela entrevistava-me, pedia pormenores do sucedido e do objeto em causa. Muito séria e em espírito de oração, como quem falava com o santo, repetia três vezes o seguinte texto, se não se enganasse, o objeto apareceria:
Santo António se vestiu e calçou.
Pelo caminho do Senhor andou.
Encontrou o Senhor,
O Senhor lhe perguntou:
– Ó António, onde vais?
– Ó Senhor, eu vou contigo.
– Tu comigo não irás,
Nesta terra ficarás,
Todas as coisas perdidas,
Ó António, encontrarás.

Não tenho a certeza se era esta a terminação, mas o certo é que, se não houvesse enganos no responso, a Teresinha diria onde ir buscar o objeto, mesmo sem sair de sua casa. Maravilhas da infância!
Bem diferente dos responsos apresentados, é o da memória da minha amiga Manuela, recitado por sua família de origem lisboeta:
O diabo esteja de joelhos a rezar,
Diante do Santíssimo Sacramento do altar,
Enquanto o objeto se não achar.

Claro que, em vez de objeto, se dirá o nome dele. 
 
 

Maria Ondina Braga, Vidas Vencidas, «O Cabelo» e «O figuinho da figueira»




Em Vidas Vencidas, a autora introduz, a propósito, títulos ou partes de textos populares, recolhidos nos Contos Tradicionais Portugueses e no Romanceiro.
No caso do texto «O Cabelo» (pp.79-84), depois de recordar os primeiros cabeleiros de Braga e de se interrogar sobre a proveniência das cabeleiras dos querubins, disfarces de procissões, refere a doença do tifo que lhe levou o cabelo liso para lhe trazer um cabelo novo ondulado. Escreve: «De qualquer modo, a minha cisma, agora, o cabelo». Lembra-se, a propósito, do lamento da «erva fina e fúlgida» quando pisada, do conto tradicional, abaixo indicado.


27 - O figuinho da figueira
Era uma vez um homem que tornou a casar, e tinha uma filha do primeiro casamento que era tratada pela madrasta mal a mais não poder. Tinham uma figueira lampa no quintal, para onde a madrasta mandava a enteada guardar os figos por causa da passarada. Quando a pequena ia para o campo, a madrasta seguia-a também para contar os figos, dizendo-lhe que a matava se lhe faltasse algum. Um dia veio o milhano e comeu três figos, por mais que a pequena o enxotasse. Quando estava já a anoitecer a madrasta veio revistar a figueira, e deu pela falta de três figos. Logo ali matou a enteada e a enterrou debaixo da figueira, e veio para casa dizendo que a rapariga tinha fugido. O pai pensou que ela teria ido servir para alguma casa longe. Um dia que o pai passava por debaixo da figueira, ficou pasmado de ver debaixo dela muitas flores, e entre elas um lindo botão de rosa. Foi para as colher, mas sentiu uma voz, a dizer-lhe:
Não me arranquem os meus cabelos,
Que minha mãe os criou,
Minha madrasta mos enterrou
Pelo figo da figueira
Que o milhano levou.
Ao princípio o homem ficou sem saber o que havia de fazer; mas por fim resolveu-se a fazer uma cova naquele lugar, para ver que coisa era. Depois de estar já bem funda a cova, descobriu uma lajem,   levantou-a, e deu com uma escadaria por onde desceu. Quando chegou lá abaixo encarou com a filha, que estava muito linda e muito bem vestida:
– Filha, como é que vieste ter aqui?
– Quando a minha madrasta me enterrou, apareceu-me aqui esta casa, e todos os dias vem aqui uma senhora dar-me de comer.
O pai ficou vivendo com a filha, e não quis mais saber da mulher.

Maria Ondina Braga - a cidade de Braga em VIDAS VENCIDAS


«E teimo na minha terra: as ruas de Braga, cada esquina, cada pedra, quase.»
Estátua de Sal, p.130.

Braga quotidiana entra na obra Vidas Vencidas de Maria Ondina Braga pela janela que dá para a Avenida, pelo caminho do liceu e por vários locais devidamente referenciados. A enunciação do real nomeado – Rua de S. Vicente, Casa Pereira das Violas, Brasileira, Igreja dos Congregados, do Pópulo, etc. – situa o leitor no espaço e no tempo dos acontecimentos rememorados na maioria dos dezassete textos que compõem a obra. Todavia, no quarto interior de “Janela Falsa” (título do primeiro texto), é o badalar fúnebre do sino dos Congregados que introduz a cidade e a temática da morte.
Lugar privilegiado era o da janela da Avenida para apreciar as tílias «remanescentes», o social vaidoso das colegas do liceu, exibindo-se nos seus vestidos a estrear, e a beleza do fogo-de-artifício, em noite de S. João. A personagem é jovem e está à janela de sentidos despertos até à girândola final, mas apenas como observadora, situação constrangedora justificada pelo medo às doenças - «orvalhadas a desoras traziam humores ruins» - e pela obediência filial, que não coartam a vontade juvenil de participar no exterior festivo em festas de S. João - «música no coreto, cantigas, danças, ervas de cheiro» (pp.26-28).

Pelo observatório das janelas da casa da Avenida, sempre ao dispor, é dada, mais do que uma vez, a paisagem bracarense coada pelos sentidos do eu da narradora. Na página oitenta e sete, descreve em primeiro plano «as centenárias tílias, a sua fragância, o frufru das folhas prateadas, o gorjeio dos pássaros ao anoitecer. E, para lá do casario, o Monte Picoto». Sobre este lugar, acrescenta uma novidade para muitos leitores: «a cruz a assinalar um homicídio cujo criminoso permanecera tão desconhecido como a vítima».

A rua de S. Vicente surge como um calvário a caminho do liceu Sá de Miranda e do cemitério. A frisar um tal sentir, mas com uma réstia de humor, escreve que essa rua «no dia de Fiéis Defuntos, por antífrase se animava. Ia dizer, se alegrava». Todavia, não esquece a Doçaria de S. Vicente - «Cheia a loja. Pessoas que compravam massapães, casadinhos, biscoitos de fidalgo. Nós preferíamos lêvedos. […] Macios, os lêvedos, deliciosos».

Não podia ficar esquecido o santo de grande veneração bracarense, advogado contra os males ruins e as verrugas, o Senhor S. Bentinho[1] de Trás do Hospital, que atraía devotos a encher a capelinha de grades escancaradas à quinta-feira e os romeirinhos, com raminhos de cravos na mão, rezando e cantando pelas ruas. É curioso o uso dos diminutivos que rodeiam esse santo, talvez por oposição ao S. Bento da Porta Aberta, em maiores proporções.

Nossa Senhora da Torre, a protetora da cidade, «do alto do seu altar de vidro, que afastava as trovoadas» e livrara Braga do terramoto em 1755, aparece invocada pelas «regateiras da praça» que lhe prometiam as arrecadas, se ela concedesse o milagre do «regresso do rei», após a implantação da República. Pela mesma causa, ofereceram os haveres muitos endinheirados: barbeiros, sapateiros, talhantes. Refere as costureirinhas, que, pelo contrário, «davam vivas ao Afonso Costa», enquanto a mãe da narradora rezava pela conversão dele. Relata uma cena de perseguição monárquica a um republicano, que tivera de se esconder no forno da Padaria Capa. Sobre esta época de transição política, escreve: «pergunto hoje, de mim para comigo, se Braga teria sido mesmo um centro talassa[2]. Sequer me custaria crer» (p.100). Confesso que só aqui entendi a possível justificação do nome da especialidade da antiga Confeitaria de Santo António (Luxa): as talassas.

Novidade para mim a oposição entre a Brasileira Nova, frequentada por «germanófilos, com o retrato do Hitler», e a Brasileira Velha, frequentada por adeptos dos Aliados, com o retrato do Churchill e do De Gaule. Frente a frente, os dois cafés desencadeavam a guerra bracarense com a insólita imposição da paz pelo «pomposo passo de cavalo do fidalgo dos Biscainhos» (104-105).

Braga está cheia de igrejas. Ao entrar na igreja do Pópulo, aproveita para destacar os «preciosos azulejos» e «os de São Vicente e de São Victor». Seguindo uma velha senhora, cicerone amável entre a panóplia de santos, perguntou-lhe por S. Tomaz de Villanueva, um santo da devoção familiar, e ei-la a indicar: «Lá em cima, no altar-mor! Aquele da mitra e capa de asperges! Muito querido, esse santo, entre os espanhóis que o apelidam de “Pai dos Pobres”».

O regresso a Braga, a Ítaca de Maria Ondina a fechar a sua odisseia, é descrito como «se arribasse a um deserto», apesar do aumento da área da cidade e da população. E, numa tentativa de explicação, escreve: «Deserto porventura muito meu. Um ermo dentro de mim. O que acontece com todos os que se distanciam do torrão natal, do lar, do ninho? Uma desforra das raízes? Uma maldição?» (p.67).
4 de Abril de 2014
Maria José Domingues
Vidas Vencidas, Maria Ondina Braga,1998, editora Caminho.

[1] Quadra popular: Senhor S. Bentinho/ belinhas a arder/ s’elas s’apagare(m)/ tornam-s’acender.
2 .Talassa - pessoa que, em Portugal, seguia o partido monárquico, no governo de João Franco, no reinado de D. Carlos I. 2 Pessoa adversa à República Portuguesa; reacionário, especialmente monárquico.