sábado, 7 de novembro de 2015

Fernando Pessoa - um escritor em diálogo



Com quem dialoga Fernando Pessoa?
Os textos pessoanos dialogam com textos autorais.
O dialogismo dos seus textos mereceu a atenção de Dionísio Vila Maior em Fernando Pessoa: Heteronímia e Dialogismo[1]. Tendo por base a obra de  Mikhaïl Bakhtine, Vila Maior salienta a reflexão do escritor russo «sobre as potencialidades dialógicas, polifónicas e alteronímicas da linguagem, do romance e da criação artística» e aplica a teoria de Bakhtine aos escritos de Pessoa.
Refletindo e estudando tais conceitos, desenvolvi parte da minha tese de mestrado, Fernando Pessoa e «A Nova Poesia Portuguesa»: da teoria à concretização poética em Pauis[2], tentando provar o dialogismo abrangente dos referidos textos com obras literárias de valor universal, mas também com textos nacionais, alimentando polémicas incentivadoras do desenvolvimento cultural. Dos textos em prosa sobre a nova poesia portuguesa,  salienta-se o diálogo com os textos de autores do movimento Renascença Portuguesa, nomeadamente com os de Teixeira de Pascoais, mas também com textos de escritores fora do referido movimento como Adolfo Coelho e Hernâni Cidade. O poema Pauis, para além dos referidos textos, dialoga com as cartas de Mário de Sá Carneiro e, indiretamente, com Santa Rita Pintor de quem as cartas falam.
Tudo isto vem a propósito da leitura em curso de Presença da «presença» de David Mourão-Ferreira[3], na parte respeitante aos escritores do Orpheu, identificados com o escritor urbano lisboeta, e os escritores do movimento Presença, identificados com o escritor de província. Refere então Mourão Ferreira que «o lugar» tem fundamental importância na criação da obra literária e cita um artigo do heterónimo pessoano Álvaro de Campo na revista Presença, nº 5, “como que a propósito”:

Os cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria, sem as montadas, os cavaleiros seriam peões. O lugar é que faz a localidade. Estar é ser.[4]

Sem contexto dialógico, o valor textual da citação é abrangente e ambíguo, próprio do valor poético da conotação; dentro do contexto dialógico, o valor significativo fica ampliado pela ironia do diálogo entre o Orpheu e a Presença. A polifonia de vozes (um eu heteronímico - Álvaro de Campos -, um tu presencista, acrescido da mão de Pessoa que escreve) abre possibilidades interpretativas acrescidas, dando uma maior eficácia à leitura.
Desenvolvendo a frase pessoana «Estar é ser», David Mourão-Ferreira separa os três movimentos pelo «estar». Assim, a Renascença Portuguesa com o fulcro no Porto impusera-se “por uma rusticidade tradicionalista, filosoficamente enevoada”; o Orpheu, “por um imperial e megalómano sentido urbanístico, sonhado em Lisboa; e a presença, enfim, iria impor-se por um plácido provincianismo descritivo, porém com asas de europeia inquietação, - colocadas em Coimbra”.
Novembro, 2015.
Maria José Domingues




[1] Vila Maior, Dionísio, Fernando Pessoa: Heteronímia e Dialogismo – o contributo de Mikhaïl Bakhtine, Livraria Almedina, Coimbra, 1994.
[2] http://www.lusosofia.net/textos/20130604-domingues_maria_jose_fernando_pessoa_e_a_nova_poesia_portuguesa.pdf
[3] Mourão Ferreira, Presença da «presença», 1ª edição, Brasília Editora, 1977, pp.27-28.
[4] Campos, Álvaro de, «Ambiente», in Revista presença, nº 5, 4-11-1927.