quinta-feira, 3 de abril de 2014

Maria Ondina Braga, Vidas Vencidas – Clube de Leitura



Maria Ondina Braga, Vidas Vencidas – Clube de Leitura

Como leitores, reflitamos por momentos no processo de criação e de comunicação literárias. É certo que o autor constrói a obra, mas, sem o leitor, a obra não se cumpre. Logo, os leitores são aqueles que completam o circuito comunicativo da obra literária.
No que respeita ao processo de criação e comunicação literárias, a autora, Maria Ondina Braga, que escreve na primeira pessoa – a escrita do eu –, vai dando alguma informação sobre esse processo, no interior da sua obra. Em Vidas Vencidas[1] estamos perante pequenas narrativas avulsas de cariz autobiográfico, em forma de memórias, unidas pela mesma narradora autodiegética, isto é, a narradora da história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa história.
Quem narra? A  autora tem consciência de que o «eu-narradora», sujeito da enunciação, é uma entidade diversa do «eu – personagem», protagonista do passado que está a ser contado, uma vez que a narradora é mais velha e distante dos acontecimentos que conta e a personagem vive esses momentos, como menina, adolescente ou adulta. A este respeito, Maria Ondina explica o seu processo criativo, em Estátua de Sal, p.77: «Quem fala é aquela parte de fora de mim sempre atenta à de dentro e a explorá-la, um atroz, um falso eu que tive de inventar para não desistir». Escrita dolorosa, a escrita do eu - “Isto de contar a vida é sempre mais triste que vivê-la”- terá afirmado.
Então, por que escreve? 
Ao longo de Vidas Vencidas vai desvendando a razão do seu escrever:
  •        Pela necessidade de renascer: «Sou como a fénix da lenda. Morro e ressuscito. Morro não em ninho de chamas olorosas mas sim na sequidão de um deserto. Que, do meu coração quebrado, o renascimento me vem das histórias que crio. As vidas das histórias» (p.86).
  •     Por herança: «penso que dela [de minha mãe] herdei o jeito de contar histórias. Meio verídicas, meio fantásticas» (p.23).
  •         Por força das histórias familiares orais sobre ouvintes: «Um dia, comentaram eu ter na família personagens de romance. Devido a isso, decerto, é que me ponho agora aqui a contar obscuros casos» (p.21).
  •        Por uma promessa feita a si própria: «a de me encontrar com os meus mortos. Meus mortos, meus maiores» (p.137).
  •         Por perseverança no cumprimento de máximas significativas: «escrita rememorativa», não a suspende, não a risca, «creio que é devido a uma frase do professor de Latim no liceu que frequentei em Braga, […] Sá de Miranda o seu nome. […]de Pôncio Pilatos, a tal frase […] Quod scripsi, scripsi» (p.136).
  • Penso que, para além de motivos não apontados, escreve também pela mesma razão por que partira de Braga: «por uma prova que a mim mesma impus, uma porfia…» (p.67). Quanta coragem foi necessária a uma mulher portuguesa e bracarense daquela época realizar a odisseia e a demanda da escrita do eu.

Para quem escreve? 

Maria Ondina pergunta-se para quem inventa as histórias – ela sente a necessidade do leitor. A receção da mensagem faz parte do processo comunicativo.
Valorizando a receção da obra pela leitura silenciosa e oral e pela recitação, no texto «A Mãe», declara que «jamais deixaria de ler histórias ou inventá-las para quem quer que fosse». Aqui está formalizada a necessidade da existência do leitor. De seguida, surge a dúvida: «E se ninguém me lê?». E responde que inventará histórias nem que seja «para a minha própria sombra». E pergunta-se: «Mas que queria dizer “para a minha própria sombra?”. Para mim mesma, naturalmente. No caso de não ter ninguém capaz de me ouvir, capaz de me ler…»; e num lamento: «Uma coisa assim, louvado seja! Tal os cães a latir em desafio à cara completa e mágica da Lua? Ou ao eco dos seus latidos? Como quer que fosse, uma segurança a nossa própria sombra. Uma segurança e um segredo» (p.28).

Pode sossegar a autora, nós e muitos outros lemos a obra, no caso, «Vidas Vencidas», na certeza de que o processo ‘escrever para ser lido’ se vai cumprindo, desde que se publique.

Braga, 3 de Abril de 2014
Maria José Domingues

[1] Vidas Vencidas, Maria Ondina Braga,1998, editora Caminho.