quinta-feira, 17 de maio de 2018

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS - o deus do labirinto



 José Saramago: The God of the Labyrinth­

A construção de um labirinto intertextual foi conseguida intencionalmente pelo autor. Navegar nesse labirinto em busca dos subtextos é um desafio.
O «autor-narrador» saramaguiano é o verdadeiro deus desse labirinto.
Fora da «gramática da narrativa», Saramago afirmou perentoriamente «Não, Eu não me escondo por detrás do narrador. Saramago é o autor e é ele que conta o que conta». Mais tarde, em entrevista, a 9 de agosto de 1996, explica:
Eu acho que isso a que decidimos chamar «narrador omnisciente» não é senão o autor, que dispõe de uma experiência pessoal, assim como de uma série de mecanismos que servem para exprimir essa voz, e escolhe o adequado de forma espontânea, sem premeditação[1].

Saramago assume a sua escrita como cidadão interveniente com o objetivo do compromisso e da cidadania: «A minha literatura reflete, de alguma forma, as posturas que ideologicamente assumo, mas não é um panfleto» (ibidem, p.364).
O compromisso é ideológico e político:
«Creio que de todos os meus livros se pode fazer uma leitura política, ainda que não seja esse o objetivo de nenhum deles. É que, sendo eu um homem político e ideologicamente muito definido, seria impossível que as minhas ideias ou as minhas preocupações não passassem por aquilo que eu faço, mesmo que o tema não seja obviamente político» (ibidem, p.365).


É evidente que pode fazer-se uma leitura política dos livros e foi exatamente essa leitura política que Saramago fez das ODES de Ricardo Reis e da restante obra de Fernando Pessoa, em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Tenhamos na devida conta o fulcro do título da obra: «o ano». Segue-se o localizador temporal: «da morte de Ricardo Reis». Tão importante como a personagem é o contexto político desse ano de 1936, para o qual Saramago elaborou, a partir de pesquisa, uma agenda com os principais factos políticos, depositada na Biblioteca Nacional com o original da obra.
Essa época histórica portuguesa tem no poder Salazar, Presidente do Conselho desde 1932, e como regimento a Constituição de 1933 com as bases do Estado Novo. A direita está no poder e a esquerda está desativada pelo regime. Assim, Saramago parece ter construído a personagem Marcenda[2], aquela que está destinada a murchar virgem, com a mão direita atuante e a esquerda paralisada, incapaz de lutar pelo amor, pois será sempre a filha conformada do Dr. Sampaio, nacionalista salazarista. Rematando, um país sem contraditório de direita e esquerda, isto é, sem democracia, não pode avançar politicamente e em todos os sentidos que do político decorrem. Será um país conformado com a sua doença, neste caso, a ditadura da direita, que durou cerca de cinquenta anos.
O referido ano de 1936 apresenta-se pleno de acontecimentos políticos terríveis à escala mundial. A isso, ironicamente, Saramago contrapõe a alienação política presente nas odes de Ricardo Reis, em especial, naquela que abre a epígrafe: «Sábio é aquele que se contenta com o espetáculo do mundo» (ode datada de 19-6-1914). Isto é, o mundo está a desabar entre a primeira guerra mundial e o começo da segunda e aquele verso alienante a martelar.
Se o labirinto é temporal, também o é geográfico na Lisboa de Eça, de Cesário, de Pessoa e de Saramago. Camões é marco incontornável na sua praça e no miradouro de Santa Catarina, na figura do Adamastor, «mostrengo» que une Pessoa a Camões.
Ligada à deambulação lisboeta de Reis contextualiza-se o labirinto intertextual, nela navegando textos de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa e referências ainda a Ribeiro Chiado e a Eça de Queirós.
A intertextualidade assumida é uma caraterística do pós-modernismo, assim como a reescrita de partes de obras de outros autores.
A obra começa e acaba com a reescrita do verso 3º, da estrofe 20, do canto III, de Os Lusíadas:
Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a Terra se acaba e o Mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano.
[...]

Vejamos a reescrita do verso na obra.
Na primeira frase da obra, lê-se «Aqui o mar acaba e a terra principia» - o Highland Brigade, vindo de Buenos Aires rumo a Londres, atraca no cais de Alcântara, com chuva sobre a cidade pálida e silenciosa de um domingo quieto.
Pode ler-se o ligeiro tom de paródia – outra característica do pós-modernismo – na afirmação «o mar acaba», considerando a inversão da posição da água, que, no momento do desembarque, cai do céu em forma de chuva, turvando o rio e alagando a lezíria, entristecendo a paisagem. Acrescente-se: a paisagem estado de alma a lembrar a escrita de Pessoa. Portugal era um país triste dominado pela ditadura do Estado Novo. E a obra tem essa dimensão política.
O tom de paródia, mais ou menos contido, atravessa a obra numa iconoclastia textual de Camões, mas, sobretudo, de Pessoa.
                Na última frase da obra, lê-se o mesmo verso camoniano reescrito: «Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera», depois de as duas personagens saramaguianas partirem para o cemitério dos Prazeres.
A paródia nessa parte final da obra faz o leitor esboçar o sorriso ao deparar-se com a decisão mortal de Ricardo Reis e com o diálogo entre ele e Fernando Pessoa, seu companheiro espetral.
Sorrimos na hora da morte das duas personagens, perante os objetos a levar ou não para a tumba: o chapéu de Reis, lembrado por Pessoa; o livro, The god of the labyrinth, que atravessa a obra labiríntica e que Reis confessa não ter lido - «Ter um livro pra ler/ E não o fazer» - e, levando-o consigo, deixa «o mundo aliviado de um enigma». Curioso, no momento em que o abre, vê «uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja» («Livros são papéis pintados com tinta»). Os versos transcritos pertencem ao poema Liberdade de Fernando Pessoa. E mais se aplicam os primeiros versos do referido poema «Ai que prazer/Não cumprir um  dever» ao não cumprimento do dever para com Lídia - «Devia ficar aqui à espera de Lídia. Eu sei que devia.». Contudo, parte com Pessoa para o cemitério - «Então vamos, disse. [...] Vamos, disse Ricardo Reis». Duvido que o «vamos» repetido pelas personagens seja inocente, atendendo à conotação da forma verbal, para quem conhece a letra do hino da Mocidade Portuguesa, que contém essa forma verbal quatro vezes.
O facto de certos marxistas considerarem Pessoa adepto do Estado Novo tem levado outros estudiosos ao contraditório através da publicação de textos de Pessoa críticos a tal regime, nomeadamente a antologia de Textos de Fernando Pessoa Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar Fernando Pessoa, edição de José Barreto, em 2015.
Sente-se no decurso da obra o confronto de duas personalidades, Saramago e Pessoa, na certeza de que o autor comanda a personagem. Corajoso, não receia os pessoanos. Construirá o labirinto do qual será rei e senhor, isto é, o verdadeiro The God of the Labyrinth[3].

Maria José Domingues

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[1] In José Saramago nas suas palavras, edição e seleção de Fernando Gómez Aguilera, Caminho, 2010, p.237-238.
[2] A palavra «Marcenda» inicia o décimo verso da ode «Saudoso já deste verão que vejo», com o sentido gerundivo, de ‘murchante’ - «E colho a rosa porque a sorte manda./Marcenda, guardo-a». Para um leitor desprevenido, «Marcenda» pode parecer um vocativo, que, no caso, seria um nome do género feminino.
[3]  Influência assumida por Saramago, na conferência «Algumas provas da existência real de Herbert Quain», da obra de Jorge Luis Borges (1899-1986), Examen de la obra de Herbert Quain, da qual se transcreve o início: «Quain ha muerto en Roscommon; he comprobado sin asombro que el Suplemento Literario del Times apenas le depara media columna de piedad necrológica, en la que no hay epíteto laudatorio que no esté corregido (o seriamente amonestado) por un adverbio. El Spectator, en su número pertinente, es sin duda menos la Quain  ha  muerto en Roscommon; he comprobado sin asombro que el Suplemento Literario del Times apenas le depara media columna de piedad necrológica, en la que no hay epíteto laudatorio que no esté corregido (o seriamente amonestado) por un adverbio. El Spectator, en su número pertinente, es sin duda menos lacónico y tal vez más cordial, pero equipara el primer libro de Quain ­The God of the Labyrinth­ a uno de Mrs. Agatha Christie y otros a los de Gertrude Stein: evocaciones que nadie juzgará inevitables y que no hubieran alegrado al difunto.cónico y tal vez más cordial, pero equipara el primer libro de Quain ­The God of the Labyrinth­ a uno de Mrs. Agatha Christie y otros a los de Gertrude Stein: evocaciones que nadie juzgará inevitables y que no hubieran alegrado al difunto» (http://www.literatura.us/borges/examen.html).