sexta-feira, 14 de junho de 2019

O CÉREBR0 – ANTÓNIO DAMÁSIO e EMILY DICKINSON



      1. A exposição na Fundação Calouste Gulbenkian



«O título, Cérebro: mais vasto que o Céu, inspira-se num poema de Emily Dickinson, The brain is wider than the Sky, no qual a poetisa norte-americana descreve ainda o cérebro humano como “mais fundo que o mar” e “com o exato peso de Deus”. É esta extraordinária complexidade do cérebro humano que a exposição vai celebrar, nas suas múltiplas representações, da ciência à arte e à filosofia.» [1]

       2. A poetisa e o cientista, debruçados sobre o cérebro, refletem e produzem textos, que em dado momento se encontram e fundem.


2.1. O poema de Emily Dickinson (1830-1886)




The Brain – is wider than the Sky –
For – put them side by side
The one the other contain
With ease – and You – beside

The Brain is deeper than the sea
For – hold them – Blue to Blue –
The one the other will absorb
As Sponges – Buckets – do


The Brain is just the weight of God –
For – Heft them- Pound for Pound-
And they will difer – if they do –
As Syllable from Sound


O cérebro é mais vasto que o céu
Pois se os pomos lado a lado –
Aquele o outro contém –
Fácil – e a você também –


O cérebro é mais fundo que o mar –
Ponha-se azul contra azul –
Aquele o outro absorve –
Como a esponja baldes sorve –


O cérebro é do peso de Deus –
Sopese-os com precisão –
E vão diferir, se é o caso,
Como a sílaba do som.


Fontes: Dickinson, Emily. “Uma Centena de Poemas”. Tradução Aíla de Oliveira Gomes, T.A.Queiroz Editor/Edit. Usp, 1985, pág. 90/91; p.195/196.


2.2. A conferência de António Damásio: O Cérebro, o Corpo, e a Naturalidade da Consciência, Domingo, 2 Junho, 18:30, Grande Auditório

Assista à conferência em: https://www.comunidadeculturaearte.com/funcionamento-do-cerebro-vai-ser-discutido-na-gulbenkian-neurocientista-antonio-damasio-e-um-dos-convidados/

2.3. A entrevista de António Damásio ao Expresso de 8 de junho, com texto de Valdemar Cruz, permite ao leitor o encontro textual com o poema de Emily Dickinson.

A propósito da exposição sobre o cérebro, li o poema «The brain – is wider than the Sky –» traduzido por «O cérebro – é mais amplo do que o Céu», o primeiro verso que dá o título ao poema e o subtítulo à exposição.
Anotei que Damásio discorda da tradução, apresenta a sua e acrescenta a análise da primeira estrofe. Ouçamo-lo:
«Nesse poema [Emily Dickinson] fala de algo que não é mais vasto, é mais largo[2]. No início diz especificamente “The Brain – is wider than the Sky” – mais largo do que o céu. Depois há um jogo muito interessante quando diz – “For – put them side by side / The one the other contain / With ease – and You – beside”. Há variadíssimas coisas de grande valor no poema. Primeiro é a ideia de que o cérebro é mais largo ainda do que o céu e que um deles, o cérebro, contém o outro, que é o universo. Depois o conceito de “ease and You beside. É um verso lindo, porque o “ease” é a facilidade, a desenvoltura, e o You beside» é o eu, a consciência. Filósofos da consciência e alguns neurocientistas insistem no contrário, na dificuldade, até mesmo na impossibilidade de compreender como é que o cérebro pode permitir a consciência. Emily Dickson tem esse verso que diz exatamente aquilo que eu gosto de dizer. Que há uma naturalidade e uma facilidade em compreender como é que o cérebro pode criar a consciência. Para fazer isso precisamos de ter a possibilidade de compreender os diversos componentes da consciência de uma forma inteligente. Estou neste momento a trabalhar sobre a consciência. É matéria de artigos e de um novo livro».

3                    2.3.1. A importância da linguagem verbal e outros assuntos
s
A entrevista de Damásio, iniciada com Dickinson - «Alguém com uma grande capacidade de reflexão e de imaginação» -, continua desenvolvendo a questão da consciência que estende a outros animais, salientando o enriquecimento da consciência dos humanos pelo facto de terem a linguagem verbal, que lhes «dá uma capacidade de simbolização extremamente profunda». E sublinha: «O grande mérito vem da linguagem verbal, matemática...».
Vinca a importância da inteligência afetiva, «que é o que permite a nossa vida e governa grande parte das coisas interessantes que fazemos na nossa vida».
Damásio volta às emoções, em síntese da sua teoria, na resposta à questão: «A inteligência     basta-se a si própria ou precisa das emoções para se exprimir?».
«Precisa e provém das emoções. Do ponto de vista evolutivo, as emoções vieram primeiro. São formas inteligentes de responder a uma situação. Não foram pensadas. Foram desenvolvidas pela natureza. [...] Recebemos as emoções. A inteligência fizemo-la nós. A invenção da matemática, da lógica, tudo isso foi desenvolvido por nós intelectualmente»[3].

Braga, 14 de junho 2019
Maria José Domingues



[1] Cérebro – mais vasto que o céu - 16 março – 10 junho 2019, Galeria Principal do Edifício Sede
Curadoria científica: Rui Oliveira. https://gulbenkian.pt/noticias/cerebro-mais-vasto-que-o-ceu/
[2] Curioso notar a correção de ‘mais vasto’ para ‘mais largo’ na tradução de «wider», uma vez que os dois sentidos estão dicionarizados como tradutores possíveis da referida palavra. Vejamos então a especificidade significativa de vasto e de largo em português, consultando o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa: «vasto (do latim vastus) 1. Que tem grande extensão. = ENORME, IMENSO. 2. Que tem grandes dimensões. AMPLO, ESPAÇOSO. [...]».   Conclui-se que o neurocientista sabe que o cérebro não é enorme nem amplo. Prefere traduzir por largo, cuja diferença significativa é a relação de largo com largura, isto é, «que possui grande extensão no sentido transversal». É evidente que a linguagem poética permite a tradução por «mais vasto», mas não a linguagem científica do especialista do cérebro.
[3] Entrevista lida no semanário Expresso, 8 de junho de 2019, 2432, primeiro caderno, pp.22-23.