terça-feira, 29 de março de 2016

Come chocolates, pequena suja



Come chocolates, pequena


Cansas-me, Fernando. Sempre à minha frente. Sai. Já não és pessoa.

Eterno, imenso, ubíquo. Tenho futuro.

Tu sabes que não há eternidade para os seres vivos, muito menos para as tabuletas e fragmentos.

Álvaro de Campos conseguiu cumprir a modernidade. Leste a Tabacaria… Tu e milhões…

Tudo se esvai em fumo e todos sabemos isso…

Come chocolates, pequena; come chocolates! Come, pequena suja, come!

E por que não? O imediatismo do prazer das glândulas a salivar e, depois, o destino alimentar encarrega-se da transformação até ao dejeto.

Percebeste!... Por isso, eu não canto as sensações gustativas. Corrijo: eu não canto nada, quem canta é o Camões; eu fabrico o Super-Camões. Eu construo poemas a partir das sensações trabalhadas no laboratório da consciência, mas confesso que nutro um certo desprezo pelas sensações gustativas.

Deixaste o alerta na Tabacaria ao adjetivares a pequena. O peso do adjetivo.

 Isso são coisas do engenheiro sensacionista. Apenas um parêntesis, nada mais. 

 De facto escreveste que «o poeta de sonho é geralmente um visual, um visual estético. O sonho é da vista geralmente. Pouco sabe auditivamente, tactilmente. E o “quadro”, a “paisagem” é de sonho, na sua essência, porque é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior. (Quanto mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho)».

Recito-te  o que me ocorre ao ouvir-te:

PRÓSPERO
Pareces perturbado, meu filho, como se
Estivesses assustado. Alegra-te, rapaz.
O nosso entretenimento acabou. Estes actores,
Como já te tinha dito, são todos espíritos,
Esvaíram-se no ar como finos vapores;
E, tal como é ilusória esta visão,
Também as altas torres, os palácios soberbos,
Os templos solenes e mesmo este grande globo
E todos os que o ocupem, se desvanecerão,
Sem deixar um só rasto, tal como os espíritos
Se dissolveram no ar. A matéria que nos compõe
É igual à dos sonhos; e a nossa curta vida
Cercada por um sono. Sinto-me vexado.
Tolera a minha fraqueza; meu cérebro está cansado.
Que a minha maleita não te perturbe. Ide
Para a minha gruta, se assim o quiserdes,
Para vos repousardes. Darei uma ou duas voltas
Para acalmar minha mente agitada.

Obcecado pelo ídolo. Sempre Shakespeare e mais uma vez A Tempestade... Contudo, penso que foi em Hamlet que te configuraste... órfão de pai, namorado de Ofélia. Terá sido contra esse destino hamletiano que Álvaro de Campos se impôs para acabar o namoro?

Não vás por aí. A minha arte avança e é vanguarda, não se prende a biografias.


zed