sábado, 6 de junho de 2015

Le Petit Prince – Le Roman de Renard – Le Roman de la Rose



Le Petit Prince – Le Roman de Renard – Le Roman de la Rose
O Principezinho – O Romance da Raposa – O Romance da Rosa

Viajando por entre os valores polissémicos das personagens de O Principezinho, não posso deixar de associar as personagens Raposa e Rosa às raízes literárias mais antigas da Literatura francesa: Le Roman de Renard do século XII e Le Roman de la Rose do século XIII. Certamente que Saint-Exupéry os teve na devida conta.
1. Le Roman de Renard, inserido na literatura satírica, tem origem nos contos orais da cultura popular e nas fábulas de Fedro e Esopo, adotando como personagem principal a raposa, com a intenção de provar o triunfo do espírito e da astúcia sobre o lobo, representante da força brutal - o que pode ser interpretado como a vingança da burguesia e do povo esmagados pela nobreza. A sequência deste subgénero literário, nos séculos XIII e XIV, é a alegoria que ataca a hipocrisia e o poderio do dinheiro.
No caso de O Principezinho, também é possível considerar a obra uma alegoria, isto é, uma narrativa que joga com o sentido duplo, figurado e oculto. E possível é  integrá-la na sátira pela crítica  às pessoas crescidas, aos embondeiros e à organização social dos asteróides, que parecem representar criticamente a falta de imaginação, o individualismo exacerbado, o alastramento da guerra e o trabalho em série, situações em que o homem apenas se vê a si próprio, ficando cego para o outro e para diferentes perspetivas de encarar a vida e o mundo. 
É de salientar que a personagem raposa, na obra O Principezinho, traz consigo a sabedoria de raízes profundas da amizade e do amor, como sentimentos capazes de quebrar a monotonia da vida. E é ela que explica ao Principezinho e aos leitores o valor de «criar laços» e a receita para «cativar»: a paciência, a aproximação lenta, a espera do momento de encontro, a criação de ritual e, depois de «criar laços», a associação de imagens a caraterísticas do ser amado.
A força bruta do lobo poderia ver-se na jiboia, capaz de esmagar qualquer ser por mais forte que seja, tal como a guerra engole as nações e os seus povos. 
Certamente a inteligência e a astúcia próprias da raposa  seriam indispensáveis para vencer a guerra, à semelhança da vitória da raposa sobre o lobo em Le Roman de Renard.
Nesse romance medieval existe mais uma personagem comum a O Principezinho: «le mouton», traduzido por “ovelha”. Se o autor escolhesse a personagem ovelha teria escrito “brebis” e não “mouton”. Acontece que, em Le Roman de Renard, Belin designa a personagem “mouton” que significa carneiro, vencedor do lobo pela força da marrada. Sabemos pela leitura da obra que o Principezinho queria um “mouton” sem chifres, isto é, não queria «un bélier». Certamente por isso se tenha optado por  ovelha, como a melhor tradução. Contudo o «mouton» do O Principezinho pode não ser tão pacífico como uma ovelha. Teme-se que esse animal coma a flor e tudo o que ela representa. Dentro da caixa será inofensivo, açaimado e atado a um poste, dificilmente comerá todos os rebentos dos embondeiros, nomeadamente aqueles que infestarão o canteiro da rosa. No momento em que o Principezinho levasse para o seu planeta um estranho aprisionado –“le mouton” o seu planeta jamais seria o mesmo. Em consequência, acabaria a liberdade natural do existir e aumentaria a preocupação de viver. Logo, o Principezinho transformar-se-ia numa pessoa crescida.
Admitindo que os três embondeiros possam ser lidos como as três forças bélicas em litígio na Europa (Países democráticos, países nazis e URSS), pergunta-se: que poderia representar «le mouton»? Quem  poderia destruir as sementes de guerra? Quem poderia ser o adjuvante do jardineiro protetor da Rosa? Talvez os Estados Unidos da América possam ser a resposta. Tendo presente o papel de Saint-Exupéry de convencer aquele país a salvar a França, poder-se-ia considerar essa hipótese. Importante é salientar o papel das restrições: a caixa, o açaimo  e aquilo que o Principezinho não levara: a correia de couro. O animal não poderia andar à solta, pois poderia comer a Rosa; ele apenas deveria comer os rebentos dos embondeiros. E é aqui que o leitor pode tomar consciência do desdobramento do narrador em pessoa crescida e em criança, tomando a criança pela ingenuidade de acreditar na salvação da Europa pelos USA. É nesse ponto que surge a dúvida ao narrador: «le mouton» comerá ou não comerá a Rosa?

2. Le Roman de la Rose (século XIII) insere-se na poesia didática da Idade Média, pelo facto de ter a intenção de ensinar literariamente a arte de amar. O Romance da Rosa é composto por duas partes. O código do amor cortês, poetado por Guillaume de Lorris - «Voici le Roman de la Rose / Oú l’art d’Amour est tout enclos» - constitui a primeira parte. O amor cortês é tratado em poemas alegóricos, nos quais a rosa representa a mulher amada. Todavia o caminho é longo e difícil para a alcançar, pois é preciso agir com delicadeza, requinte e poesia, tal como a raposa ensina ao principezinho.
A segunda parte da obra é redigida por um clérigo latinista e misógino, Jean de Meung, crítico social, para quem a nobreza é apenas a das qualidades morais e intelectuais. Ele aborda assuntos variados (sátira do tempo, filosofia da natureza, temas morais, sociais ou políticos) e isso pode reenviar o leitor para os seis asteróides de O Principezinho e para a crítica social que encerram.
O tópico poético da rosa continuou a ser tratado na poesia preciosa como símbolo da mulher amada, da beleza efémera e do amor e ainda da fragilidade da vida humana.
Ronsard, o príncipe dos poetas francês do século XVI, trata,  em vários poemas,o tópico da rosa, imagem simbólica, que traduz em antítese a experiência paradoxal do tempo: por um lado, o aprofundamento vertical do momento presente em fuga à coação do tempo; por outro, o sentido da passagem do tempo e da finitude da experiência amorosa. Entre a contradição e a harmonia, desenrola-se o amor de que a rosa, de beleza efémera e com espinhos, é o símbolo. Certamente, por isso, o Principezinho fala primeiro dos espinhos e, depois, da sua frágil e bela rosa, mas também vaidosa e enganadora.
Pode ler-se em Ronsard (Les Amours) e em Saint Exupéry (Le Petit Prince) a harmonização de forças contraditórias, unindo a experiência poética e a experiência sentimental, através de um impulso vital, numa ânsia de plenitude «que faz convergir em momentos privilegiados todas as tensões do universo». Esse processo liga-se à vivência do tempo que associa ao momento presente o sentimento da intemporalidade. E a imagem da rosa condensa todo esse processo transformador das referidas obras literárias.
No contexto político, a rosa do Principezinho poderia ser interpretada como a França de       Saint-Exupéry, centro das suas preocupações, no momento em que escrevia a obra em questão. Outras interpretações têm sido dadas, por exemplo, a rosa seria  sua mãe ou sua esposa Consuelo.
Penso que, de uma forma abrangente, a Rosa seria a essência espiritual da cultura e civilização europeias, que o autor centra na França, o país da Rosa em poesia lírica de amor. Exilado, pretende salvá-la, introduzindo um estranho e possível salvador.

Junho, Maria José Domingues