segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Direito a uma boa morte (eutanásia) - ABAFADORES – em Miguel Torga e em Michael Haneke

Direito a uma boa morte (eutanásia)
ABAFADORES – em Miguel Torga e em Michael Haneke


Certamente animais únicos com consciência de nascer condenados à morte, os humanos ainda não descobriram a arte de bem morrer, exceto casos especiais ou ligados à crença religiosa ou em suicídio bem organizado e bem sucedido.

Leio o conto «Alma-Grande», o Abafador, de Miguel Torga, em Novos Contos da Montanha, e consigo percecionar o medo comunitário das últimas palavras na hora da morte, que poderiam condenar toda uma família ou mesmo uma comunidade de judeus/cristãos-novos à Inquisição fatal. Abafa-se a dignidade humana com receio da rebeldia da última hora, no momento em que alguém avisa que chegara a hora de chamar o padre, representante de uma religião dita de amor transformada em polícia das almas. Mau morrer aquele às mãos de Alma-Grande, o «pai da morte»:
            «O seu papel não era olhar; era ir inteiro com as mãos ao pescoço, com o joelho à arca do peito, e retirar-se uns minutos depois, como um instrumento que tivesse cumprido correctamente a sua função. […]
Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de desespero, apelos sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão sagrada! Quantas vezes! Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra maneira.
- Não... Não... Ainda não».

No último caso de Alma-Grande, Isaac salva-se do abafamento graças à presença inesperada do filho – uma criança de nome Abel.

Vejo o filme AMOUR (2012) de Michael Haneke e nele observo a condição humana do envelhecimento do casal melómano e da doença paulatinamente degenerativa e degradante da mulher. Regressada do hospital, ainda lúcida, faz prometer ao marido que a não interne, pois detesta hospitais e instituições e, por isso, quer viver e morrer em casa. A solidão do casal progride ao ritmo da progressão da doença. A sua única filha vive no estrangeiro e é de opinião que a mãe deve ser internada, desconhecendo a promessa feita pelo pai. Ele, velho e cansado, cuidador amoroso, desempenha o papel de abafador, servindo-se da almofada. E mata-a por amor.

As problemáticas do abafamento nas duas obras são diferentes. No primeiro caso, o abafamento é consentido pela comunidade judaica por razões político-religiosas e, no segundo caso, o abafamento não é consentido pela sociedade, que, por sua vez, não apoia os doentes e os cuidadores no domicílio, nem zela pela boa morte.

Sabendo todos nós, humanos, que a morte é certa e que o envelhecimento está em curso, temos o dever de debater o assunto, em busca da melhor solução em cada caso. Claro que o assunto apenas é premente para os ateus, uma vez que os crentes estão na mão de Deus, dono e senhor das suas vidas e das suas mortes. Estes, porém, não têm o direito de impedir aqueles de defenderem as suas propostas em prol de uma boa morte com dignidade – uma morte medicamente assistida, na certeza, de que a maioria das pessoas, em Portugal, no século XXI, morre sozinha e não morre onde desejaria morrer, conforme Estudo Epidemiológico dos Locais de Morte em Portugal em 2010 e Comparação com as Preferências da População Portuguesa, de Barbara GOMES, Vera P. SARMENTO, Pedro Lopes FERREIRA e Irene J. HIGGINSON, que conclui:



«Dos 105 471 óbitos que ocorreram em Portugal em 2010, 61,7% deram-se em hospitais/clínicas e 29,6% no domicílio.
Dos 1 286 residentes em Portugal que participaram no inquérito PRISMA, 51,2% expressaram preferência por morrer em casa, 35,7% escolheram uma unidade de cuidados paliativos, 8,9% o hospital e 2,2% lar ou residência.
Existe um desfasamento substancial entre a realidade e preferências para local de morte em Portugal.
Para ir ao encontro destas preferências é prioridade nacional desenvolver serviços de cuidados paliativos domiciliários, que previnam o aumento de óbitos hospitalares e que apoiem a morte em casa, com qualidade e respeitando preferências individuais»[1].

Não se pode abafar uma problemática destas, para a qual a Professora Laura Ferreira dos Santos tem vindo a chamar a atenção com os seus artigos, nomeadamente, no seu artigo, motivador deste texto, «Miguel Torga, o abafador e a a eutanásia. Quem são os verdadeiros abafadores?»[2].

Braga, 5 de dezembro de 2016
Maria José Domingues






[1] Estudo publicado in Acta Med Port 2013 Jul-Aug;26(4):327-334,
[2] Artigo consultado a 5 de dezembro, em
https://www.publico.pt/2014/08/31/sociedade/noticia/miguel-torga-o-abafador-e-a-eutanasia-1668153

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O GRITO



O GRITO
Trepa paredes bate no teto
Acorda a engomadeira embalada em trabalhos de mulher

O GRITO
Sobe a calçada silenciada
E acorda a mãe do sono dos mil trabalhos envolventes

O GRITO
Ecoa para sempre na cabeça da criança agredida

O GRITO
Pode salvar pode matar mas é preciso gritar

Zed, 15 de setembro 2016




O Grito é uma série de quatro pinturas do norueguês Edvard Munch, a mais célebre das quais datada de 1893. A obra representa uma figura andrógina num momento de profunda angústia e desespero existencial. Wikipédia
Dimensões: 91 cm x 74 cm
Criação: 1893–1893
Período: Expressionismo


domingo, 10 de julho de 2016

Roberto Carneiro - Conferência Internacional de Literacia em Português



 [Vale a pena reler e repensar.]
 

Conferência Internacional de Literacia
em Português


No quadro da reflexão que propomos fazer, o Prof. Roberto Carneiro, um dos membros do nosso Conselho Científico, deu-nos a possibilidade, que agradecemos, de chamar a atenção, sobre a sua Conferência, proferida no Centro de Congressos de Lisboa a 14 de Dezembro de 2005.

DESCOBRIR O TESOURO
            
1.    A Opção Estratégica e os Ciclos Longos da História

«A opção estratégica de fazer do nível secundário completo o limiar mínimo sobre que repousará a sociedade portuguesa no futuro acarreta um potencial de transformação semelhante para a economia nacional e para o desenvolvimento sustentável de toda a sociedade. Trata-se, é justo reconhecê-lo, de um desígnio
que não é novo no plano das ideias mas que não encontrou até agora os instrumentos adequados à sua firme concretização no plano das políticas públicas.
Em Julho de 2000, no termo de dois anos de aturado estudo realizado a pedido do Governo, um vasto leque de personalidades e académicos portugueses concluiu e divulgou um documento intitulado 2020 – 20 anos para vencer 20 décadas de atraso educativo. Aí se demonstra que o atraso educativo português provém de meados do século XIX e que não deixou de se acumular até há cerca de 30 anos, atrás


Encontramo-nos historicamente defrontados com o desígnio de garantir o direito universal à formação e a determinação de “atacar” uma dupla desigualdade:

Em primeiro lugar, a inaceitável, diria insuportável, rejeição pelo sistema escolar de cerca de 45% dos jovens alunos ao seu cuidado que, por razões diversas, não alcançam o mencionado nível limiar do ensino secundário, os quais engrossam ano após ano a multidão de portugueses de baixas qualificações e reduzidas hipóteses num mercado de trabalho cada vez mais insaciável na procura de habilitações e de competências avançadas.
Em segundo lugar, a desigualdade humilhante sofrida por população adulta que, excluída de uma escolaridade habilitante para viver e trabalhar numa sociedade crescentemente baseada nos saberes, se vê constrangida pela vida fora com o peso de um “pecado original” de que não é culpada, antes é a vítima.»…..

« A este propósito, recordarei aquilo que, em conclusão do referido estudo
prospectivo, e no que à vertente da requalificação do stock se impõe, propúnhamos aquando da sua apresentação em 2000:
Assim, um 1º cenário – relativamente conservador na sua ambição – consistiria em pretender alcançar, em 2020, a situação actual dos países europeus mais avançados, como a Finlândia, Dinamarca ou Holanda, no que respeita à estrutura educativa da sua população dos 25-64 anos. Para o conseguir, Portugal teria de habilitar e/ou qualificar à volta de 2,5 milhões de adultos activos, dos quais cerca de metade com o nível secundário ou equivalente
de formação (...) Num 2º cenário – mais ambicioso – que colocaria como meta convergir com a estrutura educativa da população na Finlândia, Dinamarca ou Holanda, por volta de 2020, Portugal ver-se-á defrontado com a exigência de habilitar e/ou qualificar à volta de 5 milhões de adultos activos, dos quais cerca de 1/3 ao nível secundário ou equivalente de formação.

Esta visão estratégica assustou uma elite confortavelmente instalada em horizontes de curto prazo e sem determinação anímica para ousar inverter a marcha da História. Não faltou quem denunciasse de irrealismo os autores do estudo ou verberasse a ausência de consideração pelos ciclos temporais da política pública. Outros manifestaram um reiterado desprezo – quando não ignorância – por aquilo que Jacques Lesourne, respeitado especialista em estudos prospectivos, evidenciou: que as transformações profundas em Educação exigem 50-75 anos para se consolidarem e produzirem frutos.
Os tempos actuais de vertigem tecnológica e de gestão instantânea dos eventos mediáticos não são propícios à afirmação de projectos nacionais de largo fôlego. A pedagogia cívica, feita de visão estratégica e de diálogo aberto, cede frequentemente o passo à voragem do consumo imediato de factos políticos

«Na história recente da educação é possível verificar que a Coreia do Sul duplicou a percentagem de diplomados de nível secundário num espaço temporal de 20 anos, elevando de 50% para praticamente 100% a taxa de conclusão de estudos secundários.
Hoje todos os jovens chegam ao final de estudos secundários enquanto há 50 anos atrás (dados de 1954) apenas 25% de cada coorte de coreanos lograva alcançar o final do ensino secundário.
A expansão firme das taxas de escolarização em Portugal conseguida nas últimas três décadas permite acalentar a fundada esperança de que, com lucidez e muita determinação, seja possível em 20 anos reverter 20 décadas de atraso, investindo simultaneamente nos planos quantitativo e qualitativo dos resultados educativos.
Confiamos em que, com a humildade que a dimensão histórica do desafio impõe, seja alcançado um pacto de geração – não um simples acordo de legislatura – suficientemente escorado para, a coberto das conjunturas políticas, propiciar a sua efectivação e catapultar Portugal para o pelotão da frente dos países desenvolvidos no decurso da centúria.

2. Um Novo Paradigma: A Educação como Serviço
Aprendi, num longo e fascinante convívio de trabalho no terreno com o autor da
“Pedagogia do Oprimido” e da “Pedagogia da Esperança” – Mestre Paulo Freire – que a Educação é um Serviço de Proximidade e que só as comunidades dispõem da energia interior necessária para resolver problemas densos de humanidade.
Neste verdadeiro teorema da vida, os educandos – sejam jovens, adultos, ou
seniores” – são sempre o principal recurso do processo formativo. Eles não podem ser considerados, longe disso, meros e passivos “consumidores” de produtos educativos generosamente prodigalizados pelos guardiães formais dos bens educativos.
A “Educação Dialógica”, magistralmente concebida por Freire, centra-se na pessoa e na sua relação dialogal com a comunidade para aí “descobrir” a matéria primeira sobre a qual se estrutura a viagem de aprendizagem de cada um. A “pedagogia crítica”, deste modo fundada, liberta e convoca pessoalmente para a tarefa da leitura da história e do compromisso pessoal na sua construção.
Ora, por isso mesmo, a Educação como Serviço pressupõe uma radical alteração do modelo dominante na nossa modernidade educativa o qual permanece prisioneiro de um paradigma de “Educação como Indústria”.

.
Ora, quando se aceita descer do pedestal e mergulhar na realidade micro, onde tudo finalmente se decide, é fácil compreender que o serviço público de educação não tem de ser um serviço uniforme de escolarização, que as soluções robustas são desburocratizadas, que a pluralidade de respostas locais é a única garantia de respeito pela dignidade humana, e que a pessoa – cada pessoa – é o autêntico sujeito do seu destino.
 Educar é proporcionar a cada um a possibilidade de escrever bem, e em
liberdade, o seu “livro da vida”.
Numa acepção lata, a criação de novas oportunidades deverá traduzir-se numa preocupação de facilitar a vida a quem quer aprender, num modelo orientado para melhor servir o cidadão.

«Será oportuno sublinhar que aqui se joga uma das dimensões mais complexas da mudança de paradigma preconizada. Os serviços públicos, com honrosas excepções, têm uma péssima tradição de relacionamento com os cidadãos e contribuintes, seus clientes fundamentais. Reformar profundamente o atendimento público, reorientar a ética de tratamento do cidadão, virar as instituições educativas e formativas – no caso em apreço – totalmente para o serviço ao educando/formando, jovem ou adulto, que passará a ser considerado o eixo central da sua preocupação e a sua razão de ser, configuram uma profunda alteração de cultura e de mentalidade absolutamente indispensável à viabilização do serviço de proximidade em que a educação/formação se deve transformar»

«Agostinho da Silva, na sua desconcertante criatividade, explicou-me um dia o seu ideal de escola: “Um lugar aonde me possa dirigir, a qualquer hora do dia, em qualquer dia do ano, para perguntar o que não sei e ... para estar com outros que queiram perguntar o mesmo que eu!”
«O novo tempo das aprendizagens visa superar a fragmentação da sociedade mosaico. A educação como serviço é uma educação ao serviço da integridade das pessoas e comunidades bem como da sustentação dos valores de civilização que lhes conferem perenidade.»



3. Descobrir o Tesouro
«Para viabilizar a plena apropriação do tesouro recordo que a Comissão propôs quatro aprendizagens para o futuro: Aprender a Ser, Aprender a Conhecer, Aprender a Fazer, Aprender a Viver Juntos.
Portugal encerra no seu seio um grande tesouro. Ele está corporizado na sua História, na sua Cultura, na sua Língua, nas suas Artes, na sua Poesia, enfim, na sua relação ímpar com o Mar e com os demais Povos do planeta. Toda uma riqueza espiritual, entesourada ao longo de quase  9 séculos de teimosa existência, é hoje património dos portugueses e das gentes que partilham uma pátria comum em permanente reconstrução. A missão da educação consiste, pois, em redescobrir esse imenso tesouro que habita o interior de Portugal e de cada português.»

«O sonho de uma Sociedade Educativa, feita de constante partilha de conhecimento e de aprendizagem ao longo da vida, é, pois, possível. Aprender a Aprender é uma componente de Aprender a Ser.
O segredo é compreender a aspiração profunda de cada um e levá-lo(a) a sentir-se apto(a) a realizar o sonho, o projecto, a visão, na arena concreta do dia a dia.»

«A aventura da aprendizagem tem de ser gratificante e proporcionadora da descoberta de sentido que está na raiz das grandes transformações identitárias. E ela deve ser intrinsecamente útil na medida em que acrescente valor de resolução de problemas para o indivíduo confrontado com questões concretas e com desafios quotidianos. Os saberes inúteis não arrebatam ninguém.
Podemos, assim, afirmar com razoável confiança que as condicionantes psicológicas da aprendizagem – memória e atenção – não são descontextualizadas. Bem pelo contrário, elas associam-se a contextos sociais que podem catalisar a conquista da auto-estima necessária à autonomia para aprender. Por isso, o sentido da aprendizagem está indissociavelmente ligado ao das redes sociais onde tem lugar a inserção comunitária do ser intensamente relacional.»

«O sentimento de confiança que advêm da consciência da conquista progressiva de novos patamares de competências é o principal lenitivo para
criar motivação acrescida para aprender.
A empregabilidade, passaporte para uma cidadania de participação social e de
inclusão económica, é função do domínio das competências críticas requisitadas por um mercado de trabalho fortemente exigente e selectivo.
O grande teste à adequação real de um programa de requalificação generalizada dos  portugueses reside, assim, na sua capacidade para motivar a nação e libertar as suas energias interiores em torno do desígnio maior da aprendizagem e da formação ao longo da vida. A generatividade da nossa sociedade aferir-se-á pelo empenho com que a geração presente se preocupa com o bem-estar da seguinte e exprime a sua solidariedade com as adversidades que atingiram as gerações precedentes.
O segredo está, pois, em criar motivação.
Sem motivação não haverá procura sustentada e sem procura motivada –
entusiasmada – não haverá oferta que subsista no mercado da formação.
Motivar a aprender e aprender a motivar – um programa difícil mas onde se decide a sorte de uma iniciativa de qualificação e requalificação maciça dos portugueses.
Neste sentido, o ideal da Sociedade Educativa não se esgota num mero projecto
técnico de melhoria das qualificações dos portugueses. Nem se confina a uma
proposta sectorial de intervenção pública.
Ela corporiza um verdadeiro projecto de comunidade, apela a um programa mobilizador da nação, significa a vontade contagiante de desinstalar um estado de coisas, corporiza uma ambição corajosa de mudar.
Terminaremos, como em Julho de 2000, aquando da apresentação do relatório
Educação 2020 na Fundação Calouste Gulbenkian, citando Leonardo Coimbra:
“O homem não é uma inutilidade num mundo já feito; antes, é o obreiro de um mundo por fazer”.
Boa sorte, Portugal!

Roberto Carneiro
Universidade Católica Portuguesa
Centro de Congressos de Lisboa, aos 14 de Dezembro de 2005





( O texto em bold pretende chamar a atenção e é da responsabilidade da Divulgação de textos)