quinta-feira, 8 de março de 2018

O Realismo e a Condição Feminina




No Clube de Leitura a que pertenço, lemos Madame Bovary de Gustave Flaubert, durante o mês de fevereiro. Sobre essa obra de 1858, pioneira do realismo artístico na Literatura, parece estar tudo escrito.
Do lido, destaco, para além da obra motivadora, A Mecânica da Ficção (2007/2010) de James Wood, que inicia o capítulo «Flaubert e a narração moderna» com a seguinte frase: «Os romancistas devem agradecer a Flaubert, como os poetas agradecem à Primavera: tudo começa de novo com ele». E, assim, há um antes e um depois de Flaubert. A ficção ganha uma mecânica especial na invisibilidade do autor, que vai deixando nos detalhes as suas impressões digitais, de acordo com a sua frase: «um autor no seu trabalho deve ser como Deus no Universo, presente em toda a parte, visível em parte alguma».

Vejamos em resumo o universo narrativo criado por Flaubert em Madame Bovary. Ema, a protagonista, aparece-nos depois da descrição de Charles Bovary e da sua incipiente educação. O primeiro capítulo é dedicado a Charles exclusivamente. A figura atabalhoada do rapaz coroado com um carapuço de um ridículo atroz não augura um futuro promissor. Não sendo especialmente dotado em coisa nenhuma, ia cumprindo os seus deveres, tendo chegado a frequentar a escola de medicina, ficando-se por «officier de santé», isto é, não chegara a obter o diploma de médico, podendo, contudo, exercer a profissão de médico generalista. Obediente a sua mãe, casa com uma viúva de quarenta e cinco anos, herdeira de uma pequena fortuna, com quem não foi feliz. Nas suas consultas noturnas, respondendo a urgências, conhece a bela Ema, com quem vem a casar, após a morte repentina da sua primeira esposa.
Neste quadro medíocre, a beleza de Ema contrasta e Charles ama-a, atabalhoadamente. Do amor, ela esperava o romance com todos os ingredientes lidos e sonhados na sua mente ávida de aventuras românticas. Ao casar com Charles que a ama, mas que não pode realizar esses sonhos, a sua imaginação busca outros amores, que vai encontrando em Léon e em Rodolfo - amores que ela rodeia do luxo possível e impossível, criando dívidas até à penhora. Na hora da necessidade, ninguém a socorre financeiramente.
Charles, igual a si próprio, ama-a e nada sabe das aventuras adúlteras nem das suas consequências financeiras e judiciais. Avassalada pela situação, Ema envenena-se com arsénico e tem uma agonia pungente. Finalmente, Charles toma conhecimento do adultério, mas continua a amá-la devotadamente no pouco tempo de vida que lhe resta.

Na minha opinião, esta obra realista e outras que nela beberam, no séc. XIX, como Anne Karenine de León Tolstoi e Luísa de O Primo Basílio de Eça de Queirós, ao pintarem a vida dramática das protagonistas, baseada no amor romântico, chamaram a atenção para a problemática da mulher, no que respeita ao seu mundo interior de emoções, sentimentos, frustrações, desilusões, e para o suicídio, no momento em que todas as portas se fecham.
E veja-se como Eça de Queirós nos esclarece acerca do objetivo do Realismo, nas Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, em 1871:

"O que queremos nós com o Realismo? Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar segundo o passado; queremos fazer a fotografia, ia quase a dizer, a caricatura do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico, explorador, aristocrático, etc., e, apontando-o ao escárnio, à gargalhada, ao desprezo do mundo moderno e democrático - preparar a sua ruína".

A salvação daquelas protagonistas tinha de passar pela libertação da Mulher, prisioneira legalmente do homem, da moral pública e da religião.
Naquela época não havia salvação. O mundo parecia imutável. Foi necessário muito tempo e muita luta para que as mulheres se libertassem das tutelas e, em luta, conquistassem os direitos com capacidade de salvar as protagonistas:

  • ·        Reconhecimento dos direitos cívicos da mulher em igualdade com o homem;
  • ·        Educação igualitária;
  • ·        Direito ao trabalho com salário sem género;
  • ·        Independência económica;
  • ·        Direito ao divórcio;
  • ·        Direito à anticoncepção.

Muitos passos foram dados, muitos estão ainda por dar. A luta ainda não terminou. E em muitos lugares do Mundo ainda nem começou.


8 de Março de 2018
Maria José Domingues