sábado, 30 de janeiro de 2016

João de Melo, Gente feliz com lágrimas – o «jogo» narrativo

Açoriano Oriental: «João de Melo "feliz, sem lágrimas" com atribuição do prémio Vergílio Ferreira [1]- Lusa/AO Online / Regional / 20 de Jan de 2016, 18:41 «O escritor João de Melo disse hoje que é um homem "feliz, sem lágrimas", com a atribuição do Prémio Literário Vergílio Ferreira 2016, sentindo-se distinguido pela qualidade da lista dos que o precederam. […]O autor do romance “Gente Feliz com Lágrimas”, que venceu o Grande Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), adiantou que, apesar de a principal premissa da atribuição do prémio não ser distinguir a literatura feita nos Açores, a “condição essencial” que fez dele um escritor “foi sempre o facto de ser um homem das ilhas, um açoriano, nascido naquele lugar, naquela ilha, naquele espaço”. João de Melo explicou que surge, depois, o que considera ser a “segunda dimensão”, que é o que aprendeu, os livros que leu, os dos outros que lhe “iluminaram o caminho e tiveram um grande poder” na sua pessoa.»

João de Melo, Gente feliz com lágrimas  – o «jogo» narrativo

O romance de João de Melo[2] insere-se na literatura novelística da segunda metade do século vinte, dentro do romance realista social e familiar. A data do nascimento do autor importa para situar o romance no tempo. Ele nasce em 1949.
O primeiro tempo é o tempo nacional da ditadura salazarista, no espírito da qual se cantou a felicidade rural simbolizada por «A casa portuguesa com certeza». João de Melo constrói a antítese da canção num romance que tem como núcleo uma família açoriana rural de S. Miguel, freguesia da Achadinha do Rosário. A maioria das personagens pertence à mesma família. A infância decorre sob ditadura paterna, regime muito agressivo, a uma só voz de comando, que se instala para sempre dentro de cada uma. É nessa interioridade das personagens que se acede ao drama nacional da pobreza infeliz sob a ditadura, quer seja paterna ou política, geradora da emigração, que pode ser a salvação sacrificada na construção de um melhor futuro para os vindouros[3].
O segundo tempo decorre no pós-vinte e cinco de abril com o regresso dos retornados (Maria Amélia), a militância esquerdista de Nuno e a sua evolução intelectual e emocional.
O romance penetra o interior das personagens numa escrita rememorativa. Trata sobretudo quatro temas: o da vida rural de uma família pobre açoriana, o da emigração e aflora o da guerra colonial, com o acréscimo da problemática literária.
A polifonia carateriza o romance, na voz de vários narradores, instalando a problemática das pessoas gramaticais com preferência pela primeira pessoa do singular para a narração de Nuno e de alguns dos seus irmãos.
A obra está dividida em seis partes.
 O Livro Primeiro reúne testemunhos centrados na infância dramática, em alternância discursiva de três (Nuno Miguel, Maria Amélia, Luís Miguel) dos nove filhos do casal Botelho.
No Livro Segundo, com subtítulo «A terceira pessoa», o narrador de terceira pessoa conta a expulsão de Nuno do seminário, a saída de Amélia do convento e a tomada de decisão do rumo das suas vidas. A terceira pessoa - «uma quase ausência de pessoa» - parece confundir-se com Marta, esposa de Nuno Miguel, dentro da «gramática do casamento».
No Livro Terceiro, com subtítulo «O último suspiro da mamã», acresce ao tema da agonia e morte, o da emigração dos açorianos para a América do Norte, onde se encontram espalhados os oito irmãos de Nuno, sobretudo em Toronto e Vancouver. Todos eles procuram evidenciar perante Nuno o sucesso possível apesar da luta diária contra o «primeiro racismo universal», a que Nuno se refere na alfândega do Canadá ao ver o tratamento discriminador dispensado aos emigrantes açorianos.
É também neste Livro Terceiro que João de Melo tenta parodiar a gramática da narrativa, no que respeita à separação do narrador do autor, fenómeno literário que denomina de «a mentira da despersonalização». O narrador desta parte da obra é Nuno que refere o seu «duplo», Rui Zinho, e considera que, entre os dois surge um terceiro, o autor demiurgo, que vai deixar o nome escrito na capa»: João de Melo. Todavia, encarrega Zinho de introduzir Marta «na morte da mãe de Nuno». Será então Rui Zinho o narrador dessa parte, podendo tratar Nuno na terceira pessoa, a partir da subparte 3 até à 9. Narra o encontro de Nuno com a família emigrada, que o chamara para se despedir da mãe moribunda, de quem guardam a mágoa da falta de colo e, em simultâneo, narra os amores e dasamores de Nuno e Marta de quem Nuno sente saudades.
O Livro Quarto intitula-se «A Outra versão de Marta». O primeiro longo discurso é de Marta, dirigido a Nuno, no qual faz a análise crítica do casamento, evidenciando a dificuldade de coadunar duas personalidades fortes e muito diferentes em ideias e projetos de vida. Segue-se a discussão em diálogo do casal, que nos dá conta do final do casamento.
O Livro Quinto, «Regresso Invisível», tem um narrador de terceira pessoa, despersonalizado, sendo Nuno e o seu duplo, o escritor Rui Zinho, personagens. Narra o regresso à aldeia natal, para que o protagonista faça as pazes com o espaço e com o tempo para melhor reconstruir o futuro. Faz parte dessa pacificação o já ter perdoado o pai e a mãe e o ser bem aceite pelos irmãos, sendo a casa por si herdada o espaço simbólico dessa paz familiar. E assim se fecha o círculo da peregrinação iniciada na infância.
Contudo, há ainda a demanda de escritor e, pela voz de terceira pessoa do narrador escreve sobre os leitores da obra do protagonista de uma forma inovadora por falta de estima. Não apela, não os torna seus interlocutores, habitual em Garrett e Camilo, mas antes os define como leitores «frívolos, mesquinhos e litúrgicos», e acrescenta: «Leitores tão estúpidos como os seus, dificilmente os teriam outros escritores».
Mais adiante, avalia a sua obra em discurso direto, depois de encontrar os livros ofertados aos familiares, para quem os tinha escrito, abandonados na casa abandonada: «São sem dúvida os piores livros do mundo», uma vez que não os levaram na bagagem da emigração. Verifica-se também por essas apreciações que a focagem negativa é uma das constantes da obra.

A sexta parte, «Livro Zero – A Felicidade Sábia», em narrativa de primeira pessoa, talvez na voz do autor literário, começa pela exaltação da imaginação com base no armazenamento memorial, pois, desse modo, pode fazer a seleção daquilo que é suscetível de construir a dita Felicidade: «Posso estar aqui, de frente para o mar dos Açores», na companhia de Marta e dos filhos, no tempo da felicidade lisboeta, ou em qualquer outro lugar e em qualquer situação. Acontece, assim, o fenómeno literário da libertação do escritor nas asas das pombas azuis.
Seguidamente, avalia a questão da pessoas gramaticais usadas na obra, para concluir que deveria ter escolhido apenas um narrador: o da primeira pessoa. Pois todos os diferentes narradores são apenas um: o narrador próximo do autor, isto é, o narrador autoral, tão caraterístico do romance português bem sucedido. Com essa opção, depois da experiência literária nesta obra, responde à problemática literária da gramática da narrativa (Gérard Genette, A. J. Greimas, etc.) a qual pretende separar o narrador do autor.
João de Melo esclarece, mais tarde, em entrevista, que «Todos os romances são autobiográficos». Porém, na obra em estudo, ele afirma que «a realidade não pertence ao artifício nem ao logro nem à fantasia dos livros», mas sabe também que a construção da narrativa resulta do movimento pendular «que oscila entre a ficção e a vida». E a vida pertence ao autor e a imaginação também. Por isso, ele desprende-se do conceito da despersonalização do autor face ao narrador e revela «o lado sublime» da felicidade autoral - uma espécie de magia que o aproxima dos deuses e lhe confere o poder de inverter a ordem e de optar pela recusa do tempo. Com afirmações deste teor, o leitor sente o poder demiurgo e libertário do autor com necessidade de vir a terreiro explicar, «através da anulação desse jogo», tanta ousadia literária, responsável por uma leitura complexa.
Afinal estamos perante uma entidade – o narrador autoral – que confessa ter construído um jogo, no qual o leitor entrou sem saber que tinha de decifrar as regras. Depois de decifradas, é declarado que se anula o jogo. E ler é isso mesmo: decifrar o jogo narrativo na maior profundidade possível e, uma vez terminada a leitura, o jogo pode acabar ou ser reiniciado com as regras já conhecidas. E então a leitura será outra.
Braga, 30 de janeiro 2016
Maria José Domingues


[1] Instituído pela Universidade de Évora em 1997, o Prémio Vergílio Ferreira destina-se a galardoar, anualmente, o conjunto da obra literária de um autor de língua portuguesa relevante no âmbito da narrativa e ou ensaio.
[2]
«João de Melo nasceu nos Açores, em 1949. Aos 11 anos, deixa a sua ilha natal para prosseguir os estudos no continente, como aluno interno do Seminário dos Dominicanos, onde permanece entre 1960 e 1967. Abandonado o seminário, passa a viver em Lisboa, prosseguindo os estudos enquanto trabalha e iniciando colaborações na imprensa escrita. É, aliás, num jornal, o Diário Popular, que publica o seu primeiro conto, aos 18 anos. A partir de então publicará contos, crítica literária e poemas em diversos periódicos de Lisboa e dos Açores, integrando-se na geração literária que, sediada em Angra do Heroísmo - e ligada ao suplemento literário do jornal A União - renovou a literatura açoriana contemporânea.
A incorporação no exército, com o posto de furriel e a especialidade de enfermeiro, em 1970, e a posterior ida para Angola, onde permaneceu 27 meses numa zona de guerra, marcá-lo-ão em termos pessoais e literários, sendo tema de vários livros seus, de que se destaca, na ficção, Autópsia de Um Mar de Ruínas, romance que é uma referência na literatura portuguesa sobre a guerra colonial. Já após a revolução de Abril de 1974, João de Melo licencia-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, mantendo sempre colaboração em diversas revistas literárias (Colóquio-Letras, Vértice e, mais tarde, Sílex, Ler, etc.). No início da década de 80, torna-se professor do ensino secundário, actividade em que reparte até hoje o seu tempo com a escrita literária», in WOOK.
[3] E recordo o cientista americano luso-açoriano-descendente  Craig Mello, prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina, em 2006, e com outros prémios na área da Biologia Molecular e das Ciências Biomédicas.