quarta-feira, 9 de abril de 2014

SÓ de António Nobre em Vidas Vencidas de Maria Ondina Braga



O de António Nobre em Vidas Vencidas de Maria Ondina Braga
Entre António Nobre e Maria Ondina Braga, que pode haver de comum? - perguntar-se-á. Apenas falaremos daquilo que os une. Os dois escritores enveredaram pela escrita rememorativa do eu. Essa escolha cria problemas ao próprio eu: eu de autor, eu-lírico, eu-narrador, eu-personagem. Ao mesmo tempo, inaugura um discurso de devassa daquilo que o eu guarda na memória. Por isso, há que selecionar e transfigurar o real memorizado.
Creio que, para Maria Ondina, António Nobre foi um ótimo companheiro, na sua solidão e no preenchimento dela pela construção dos textos que se transformaram em obra.
As epígrafes do introduzem textos de Maria Ondina em Vidas Vencidas.
O texto «Luiza», um texto dramático, tem como epígrafe uma estrofe do poema «António»:
A Prima doidinha por montes andava,[1]
À Lua, em vigília!
Olhai-me, Doutores! há doidos, há lava,
Na minha família...
Esta epígrafe dá força psicológica, para que se escreva a história de Luiza, pois em todas as famílias houve e há situações constrangedoras, mas que precisam de ser contadas. No caso da loucura da tia Luiza, criada pela avó, bisavó da narradora, estamos perante a ditadura familiar de uma mulher mais velha e poderosa sobre uma outra mais nova e frágil. Situação geracional muito frequente, mesmo entre mães e filhas. O cerne da situação narrada aponta para uma realidade social frequente até, pelo menos, meados do século XX. Refiro-me à colocação de filhos em casa de avós, de padrinhos, de tios, de famílias abastadas, por casais com muitos filhos e com dificuldades económicas. Esta deslocação do seio familiar revela-se dramática no caso da personagem Luiza e tem como consequência posterior a sua loucura.

No texto «Rua de S. Vicente», a narradora descreve essa rua a caminho do liceu e a caminho do cemitério, recordando-a, no quarto interior da sua memória, como «uma rua soturna» de «casas funerárias, enterros, homens e mulheres de preto». Maria Ondina escolheu para epígrafe os seguintes versos de António Nobre, da fala da Esperança, no poema «À Toa»:
Morri, irmãos! Mas lá ficaram minhas vestes,
No vosso mundo: dei-as dadas aos ciprestes.[2]
Com esta epígrafe, a tónica é colocada naquilo que se deixa, depois da vida vencida. As vestes de que fala António Nobre seriam os seus versos, que ele considerou os mais tristes que se fizeram em Portugal. Também Maria Ondina escreve melancolicamente, por vezes, com a tristeza que flui pela sua rua de S. Vicente com três paragens: a do liceu, de que não guarda boas recordações; a do cemitério, no Dia dos Fiéis Defuntos, menos triste, com «passeata pelo campo-santo» a ver as fotografias e a ler os epitáfios; a da Doçaria de S. Vicente, em prova de vida, saboreando os lêvedos.
O percurso da casa da Avenida Central até ao cemitério talvez possa ser considerado o símbolo da viagem dos seres humanos do nascimento até à morte. Pelo caminho, encontra-se de tudo, os professores, as colegas, os enlutados, a louca, a enfarruscada, as lojas variadas, desde a farmácia à funerária. Mas prevalece a morte que sempre vence a vida.


[1] Poema «António», in Só, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, p.89.
[2] Poema «À Toa», p. 163.