quarta-feira, 21 de agosto de 2019

O PALÁCIO – poema de Sophia de Mello Breyner Andresen - «Era um dos palácios do Minotauro»,



«Era um dos palácios do Minotauro»

A Casa Andresen – «Era um dos palácios do Minotauro», segundo Sophia.
Interrogo-me acerca da metáfora poeticamente assumida, em contraponto com o poema Carta a Ruben A., no qual, a casa Andresen surge como o cenário da «infância antiga», um presente para os dois primos escritores, capaz de ser semente poética com futuro, como as suas obras o provam, escritas antes da chegada do Minotauro ao Palácio.
Esse período anterior ao Minotauro ainda não contaminado pela morte permite construções leves e diáfanas com asas de fantasia. Recordo a beleza do cenário de A Noite de Natal de Sophia, quer no interior, quer no jardim do Palácio, e na escadaria que une os dois espaços, pela qual desce a pequena Joana a contemplar a noite. Também é inesquecível a obra Floresta de Sophia, na qual a menina, Isabel, construía a casa dos anões com quem convivia sob o enorme carvalho antigo. E O Rapaz de Bronze, em pleno jardim do Palácio, vive e convive com as mais variadas flores, num baile em que todos participam, tendo como convidada a pequena Florinda. Livros de uma beleza pulsante numa construção de um presente aberto à felicidade da criança.
Que aconteceu para que aquele belo palácio rodeado pela mais bela e cuidada vegetação seja apresentado como sendo «um dos palácios do Minotauro»?

O Minotauro de Sophia

Assim o Minitauro longo tempo latente
De repente salta sobre a nossa vida
Com a veemência vital de monstro insaciado

Sendo o Minotauro um monstro mítico antiquíssimo comedor de jovens em labirinto perfeito criado por Dédalo, talvez se possa pensar que Sophia, a partir de certa época, passe a olhar o palácio como o labirinto da morte. Acontece frequentemente olhar-se para a casa-família  como a casa da morte quando nela vemos morrer os nossos familiares mais queridos e aqueles que nela viveram e morrem ali ou em outros lugares. De acordo com a cronologia apresentada por Isabel Nery na biografia da poeta, o pai, João Henrique Andresen, morre com 59 anos, a mãe com 69, o irmão, João Henrique Mello Breyner Andresen, com 47, e o primo Ruben A. com 55 anos. Esta última morte aconteceu em 1975, segue-se o poema Carta a Ruben A., em 1976 e O Palácio em 1977. Talvez seja essa morte a motivadora mais direta do poema, que  abaixo se transcreve.
O palácio do Minotauro, a que não faltava o grito, era vermelho, a cor da rebelião, mas, sobretudo, no contexto, a cor do sangue dos jovens devorados pelo monstro. E, afinal, o palácio que antes fora cenário de uma bela Noite de Natal é apresentado como gerador do Kaos «onde tudo nascia». Recorde-se que Kaos[1] é o título de uma obra póstuma de Ruben A., considerada pelo autor como a sua obra máxima, perspetivada para quatro volumes e interrompida pela morte prematura.


O Palácio
Era um dos palácios do Minotauro
— O da minha infância para mim o primeiro —
Tinha sido construído no século passado (e pintado a vermelho)

Estátuas escadas veludo granito
Tílias o cercavam de música e murmúrio
Paixões e traições o inchavam de grito

Espelhos ante espelhos tudo aprofundavam
Seu pátio era interior era átrio
As suas varandas eram por dentro
Viradas para o centro
Em grandes vazios as vozes ecoavam
Era um dos palácios do Minotauro
O da minha infância — para mim o vermelho

Ali a magia como fogo ardia de Março a Fevereiro
A prata brilhava o vidro luzia
Tudo tilintava tudo estremecia
De noite e de dia

Era um dos palácios do Minotauro
— O da minha infância para mim o primeiro —
Ali o tumulto cego confundia
O escuro da noite e o brilho do dia
Ali era a fúria o clamor o não-dito
Ali o confuso onde tudo irrompia
Ali era o Kaos onde tudo nascia

in O Nome das Coisas, 1977

mariajosédomingues

















[1] Comentários à obra: «Como diz acertadamente Vasco Pulido Valente: ‘O Kaos é aparentemente a República. Mas também é 1820, o liberalismo, a revolução, Portugal.’ E é também, acrescento eu, o 25 de Abril de 1974 contado através da história da nossa Primeira República. O presente vivido pelo escritor relatava os acontecimentos contados pelo historiador. O conhecimento do passado contribuía para melhor entender a actualidade e para melhor compreender o fim da Monarquia.» https://www.assirio.pt/produtos/ficha/kaos/11237096

domingo, 11 de agosto de 2019

Carta a Ruben A. - Sophia de Mello Breyner Andresen


Carta a Ruben A. - Sophia de Mello Breyner Andresen
Em 11 de julho de 1964, Sophia disse: «A obra de arte parte do real e é destino, salvação e vida. Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso»[1].

Qual é a coisa à volta da qual foi traçado o círculo no poema Carta a Ruben A.?

Em Carta a Ruben A. o círculo maior parece fechar com a morte do primo, mas antes houve a vida com uma «infância antiga» e conjunta. O círculo menor representa a «infância antiga», a coisa que pode ser ofertada, «verso a verso», unindo os dois primos - a destinadora e o destinatário. Contudo, o círculo que anda à volta da coisa não se fecha, visto que, por um lado, a notícia da morte não é entendida bem pela destinadora, pois aquele que morre fica na memória e é semente do próprio poema; por outro lado, a ofertada infância antiga «Guarda em si a semente que renasce». E o poema é um renascimento poético de Ruben A. e de Sophia, enquadrados num espaço – a Casa Andresen e o seu parque - e num tempo – o paraíso / «infância antiga», com a semente a germinar em futuro poético intrincado com a botânica. E, assim, o paraíso não ficou perdido, antes semente de textos e de conhecimento a germinar na Quinta do Campo Alegre, Jardim Botânico do Porto.

Carta a Ruben A.

Que tenhas morrido é ainda uma notícia
Desencontrada e longínqua e não a entendo bem

Quando — pela última vez — bateste à porta da casa e te sentaste à mesa
Trazias contigo como sempre alvoroço e início
Tudo se passou em planos e projectos
E ninguém poderia pensar em despedida

Mas sempre trouxeste contigo o desconexo
De um viver que nos funda e nos renega
— Poderei procurar o reencontro verso a verso
E buscar — como oferta — a infância antiga

A casa enorme vermelha e desmedida
Com seus átrios de pasmo e ressonância
O mundo dos adultos nos cercava
E dos jardins subia a transbordância
De rododendros dálias e camélias
De frutos roseirais musgos e tílias

As tílias eram como catedrais
Percorridas por brisas vagabundas
As rosas eram vermelhas e profundas
E o mar quebrava ao longe entre os pinhais

Morangos e muguet e cerejeiras
Enormes ramos batendo nas janelas
Havia o vaguear tardes inteiras
E a mão roçando pelas folhas de heras
Havia o ar brilhante e perfumado
Saturado de apelos e de esperas


Desgarrada era a voz das primaveras

Buscarei como oferta a infância antiga
Que mesmo tão distante e tão perdida
Guarda em si a semente que renasce

Junho de 1976

in O Nome das Coisas, 2006, editorial Caminho.

10 de agosto de 2019, postado por Maria José Domingues


[1] Citação de Piero Ceccucci, «Trazer o real à luz – o olhar e o ouvido voltados para os seres e as coisas na poética de Sophia», in revista Colóquio, n.º176, p.16.