sexta-feira, 1 de maio de 2020

COVID19 «E agora, Maria José?»


 COVID19 «E agora, Maria José?»


Fado da Tristeza – José Mário Branco


Não cantes alegrias a fingir
Se alguma dor existir
A roer dentro da toca
Deixa a tristeza sair
Pois só se aprende a sorrir
Com a verdade na boca

Quem canta uma alegria que não tem
Não conta nada a ninguém
Fala verdade a mentir
Cada alegria que inventas
Mata a verdade que tentas
Pois é tentar a fingir

Não cantes alegrias de encomenda
Que a vida não se remenda
Com morte que não morreu
Canta da cabeça aos pés
Canta com aquilo que és
Só podes dar o que é teu.

O tempo é de tristeza e de estranhamento. Dobre de finados numa primavera fria, chuvosa e deserta. Morreste, José Mário, a tempo de não pertenceres a um povo encerrado e ferido por força de um vírus.
Livraste-te de uma pandemia apenas imaginável em ficção e temida pelos arautos do futuro.
O Fado da Tristeza convida a que se cante a verdade «da cabeça aos pés», ainda que triste. Pois não há tristeza maior do que aquela que estamos a viver. Nem sei falar sobre ela. Mas vou esforçar-me pela minha saúde mental.

Então soa a pergunta feita por Drumond de Andrade no poema José: «E agora, José?» - repetida por José Cardoso Pires em De Profundis Valsa Lenta.
Cita-se parte do poema José, motivador direto do texto-desabafo em construção:


«E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
[...]
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,

não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

[...]»



Varados pela situação criada pelo covid19, fazemos a pergunta sem ousar dar uma resposta.
Há muito que a sociedade se preocupa com o excesso de idosos, como se eles fossem um fardo económico-financeiro, esquecendo o seu valor. Ouço dizer que no Oriente não é ou não era assim (que oriente?). No Oriente e no Ocidente, cultiva-se a juventude bela e forte, em sofisticação mundana. Os velhos tentam preservar a juventude a todo o custo
O vírus responde ao desejo da eliminação dos mais velhos. Parece fabricado por essa medida. Por isso, uma cientista maior o considerou «bonzinho».

Eu pertenço à faixa etária dos idosos. Estou só e confinada em minha casa por força da pandemia e por opção espacial. Tenho uma família que já vai na quarta geração – mulheres e homens, jovens dos dois géneros e um casal de bisnetos. E não posso tocar-lhes. Apenas vê-los de longe e tocar muito no telemóvel. E valha-nos ele, pois permite uma comunicação do ver e do ouvir. Mas isto chega? E até quando? Até à vacina? Um ano e meio? Até à morte?

Temos pouco tempo de vida e gostaríamos de o aproveitar. E agora?

Dispensaram os nossos serviços. É certo que estamos reformados, mas ainda servíamos de pais, de avós, de amigos solícitos e companheiros. Fechados, apenas a telecomunicação nos une. E não chega.

Eu sei que o confinamento surge como uma capa protetora, por isso o aceitamos. Como dizia uma jurista, pode desrespeitar-se, uma vez que não tem força legal. Mas o medo viral instalou-se.

E agora, Maria José?

Depois de viver na emergência dos outros – tantos alunos, tanta família – fica difícil responder em solidão. Os outros precisam menos de nós. É um facto. Sentimos que já somos dispensáveis. Diria, altruistamente: - Ainda bem. Mas dói essa dispensabilidade.

 Leio Siddhartha de Hermann Hesse, obra centrada na descoberta do «eu» em processo até chegar, na velhice, à espiritualidade máxima pela integração na Natureza em amorização.
E penso que a presente reclusão será o momento mais adequado para ir construindo a parte final do meu processo.

Siddhartha, o protagonista, na parte final da vida, estacionou junto ao rio como barqueiro, e. aí, voltou a jejuar e a esperar em reflexão constante, até à fusão com as águas do rio. Mas ele tinha um trabalho que envolvia outros humanos. E eu ocupo-me de mim mesma, da minha casa e pouco do meu jardim (nem Candide consigo ser).  De facto, poucas vezes me tive a mim e aos meus objetos como ocupação. Tenho então de fazer a inversão ocupacional. O processo é difícil e constrangedor. Até os aparelhos protestam, as portas repelem, as panelas queimam, os fósforos não ardem...
Restam milhões de palavras como paisagem trepadora nas minhas paredes. Mas aí são os olhos que protestam (e já estão a protestar). 
Não vejo o rio, apenas o céu e as copas das árvores - confinamento visual.

E agora, Maria José?

Hermann Hesse e Pessoa apontam a busca  de «a outra coisa».
Escreve Hermann Hesse: «Não posso dizer-te «a outra coisa», amigo. Tu aprendê-la-ás». 
Poucos anos antes, escrevera Fernando Pessoa, em Pauis: «Que pasmo de mim anseia por outra cousa que o que chora!».

A ânsia de «a outra coisa» tem de alimentar a busca pessoal, de modo a não estagnar em desespero e pasmo.


Braga, 30 de abril de 2020.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

SOCORRO


Eu vivo
Num mundo chamado Socorro
Rodeada de cuidados
Por amor
Cuidado não saia de casa
Cuidado não se aproxime
Por amor
Não dê beijos nem abraços
Afaste-se por favor
Ele anda por aí
À espera de entrar
Proteja-se
Não morra já
Espere pela morte certa
Não agora
Ela virá

17/4/2020 - zed

quarta-feira, 11 de março de 2020

AUTOBIOGRAFIA de José Luís Peixoto vs artigo de Pilar – uma leitura



Terminada a leitura da obra, tive a curiosidade de saber qual teria sido a reação da leitora Pilar del Rio. Como companheira amantíssima de Saramago e da sua obra, que teria ela sentido ao ler esta escritura com tanto Saramago dentro – ele é o protetor daquele José filho de pai emigrado, filho do abandono, da pobreza, da insegurança; ele é o modelo de homem e de escritor - bem visível na epígrafe inicial e nas   capitulares; e não só.
Paro aqui na epígrafe inicial por constatar que ela aclara a estranheza do título e contém o segredo das personagens «José». Afinal «tudo é autobiografia» - afirma José Saramago em Cadernos de Lanzarote, 1997. Assim sendo, um romance é uma autobiografia, com muita mais razão do que o gesto de apanhar «um objeto do chão». Aconselha-se o leitor a reler a epígrafe depois da obra lida para fazer a verificação do afirmado.
Voltando à leitura feita por Pilar, base do artigo «Pura Literatura»[1], em Ecos da leitura, verifica-se que ela agarrou a trave mestra da obra: a criação literária, em geral, e a de um segundo romance, em particular. Vida e obra de mãos dadas ou em contramão vão sendo narradas na sua construção e desconstrução literária.
A Angústia da Influência também se passeia na obra de uma forma original: sem matar o patrono, o escritor mais novo funde-se com o mais velho, formando um único José. Também Pilar foi sensível a esta questão, referindo «o jogo (...) completamente fictício». E sublinha que é «pura criação, criação literária». E ainda bem que o afirma, uma   vez que o leitor se vai interrogando ao longo da obra sobre se Saramago protagonizou aquelas «boas ações» em benefício do sofredor e tímido jovem José, que surge a meus olhos com a figura de José Luís Peixoto. 
Se as obras referidas são as de Saramago, se a maioria das personagens são saramaguianas, também se pode aceitar que as ações protagonizadas por Saramago são de Saramago.

11/3/2020
MJDomingues






[1] https://joseluispeixoto.blogs.sapo.pt/pilar-del-rio-sobre-autobiografia-de-162051