segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Os Azevedos da Portela das Cabras em A Casa Grande de Romarigães de Aquilino Ribeiro



Os Azevedos da Portela das Cabras
em A Casa Grande de Romarigães de Aquilino Ribeiro

Aquilino Ribeiro, activista republicano, apresenta, na «crónica romanceada» da Casa Grande de Romarigães, uma paródia de linhagens. Na primeira parte, aparecem duas linhagens, em confronto: de um lado, os Cunha de Romarigães, descendentes do licenciado abade Gonçalo da Cunha e, do outro, a família Azevedo da Portela das Cabras, que se diz descender do rei merovíngio Quilderico, passando por Lopo Dias de Azevedo, armado cavaleiro pelo próprio Mestre de Avis, na batalha de Aljubarrota. 
Depois da fusão, em conflito, das duas linhagens, pelo casamento de Luís de Antas da Cunha com Joana de Azevedo, a narrativa centra-se nos descendentes desse casal, sediados na Casa Grande de Romarigães, passando por períodos áureos e decadentes até à ruína, da qual se recupera com a mudança da posse para a bisneta do boticário Bento da Ponte, casada com Hilário Barrelas (uma máscara onomástica hilariante para Aquilino?), sem qualquer vislumbre de nobreza.
 Assim foi e assim é hoje, na roda da posse e no avanço democrático: da nobreza para a burguesia ou para o povo. Assim foi com a posse da Casa Grande de Romarigães, com a posse de algumas das casas dos Azevedos da Portela das Cabras ou com a Quinta de Azevedo de Lama (Barcelos), agora, na posse da empresa Sogrape.
É de considerar que, provavelmente, certos dados biográficos do autor poderiam ter influenciado a construção irónica da obra-prima. Certo é que Aquilino é filho do padre Joaquim Francisco Ribeiro e casado, em segundas núpcias, com Jerónima Dantas Machado (a menina de olhos grandes, castanhos e leais»?),possuidora por herança da casa grande de Romarigães, onde o casal habitou, depois do restauro, durante o qual Aquilino diz ter encontrado «uma rima de papéis velhos» e, nela, um manuscrito da autoria de Manuel Afonso, de Venade, intitulado «Vida de D. Luís António de Antas e Meneses, sargento-mor de Milícias e procurador às Cortes de 1828». Este manuscrito, as «Cartas de dois amantes verdadeiros» e ainda o que mais houvesse de interesse para a obra nessa rima de papéis velhos poderiam ter sido fonte para a crónica romanceada.


Insere-se na narrativa, nos capítulos III e IV, a história nacional da guerra da Restauração com a invasão da Galiza. Entre os invasores ia a fidalguia minhota, da qual fazia parte Luís de Antas da Cunha da Casa Grande de Romarigães. A nobreza do Alto Minho e da Galiza, aparentada, entendia-se; por isso, tudo decorreu entre hóspedes e anfitriões. Como entretenimento, os jovens oficiais pescavam ou visitavam educandas e noviças às grades dos conventos galegos. É nesse contexto que surge a personagem Joana de Azevedo, que «pertencia à casa de Azevedo, de Portela das Cabras, termo de Barcelos, filha de Simão de Vilas Boas, senhor do morgadio[1], e de sua primeira mulher, D. Ana de Barros Rego». Era prima em terceiro grau de Luís Antas da Cunha, que decidiu ir ao convento oferecer-lhe os seus préstimos. Esse encontro foi o primeiro de muitos, uma vez que caíram de amores. Porém, ela fora destinada pela família e com seu consentimento à vida religiosa, para que o morgadio ficasse incólume para seu irmão, Gualter de Vila Boas, filho do segundo casamento de seu pai - «sacrificando-se, era um preito que rendia à fidalguia dos Azevedos». Preparava-se, então, para os votos, quando surgiu o primo a transtornar os planos familiares.
A ferroada republicana é aplicada à genealogia da família Azevedo pela voz do narrador, a propósito da compreensão de Luís da Cunha pelo drama do «holocausto» da prima, sacrificada «à vesânia senhorial duma família, que se orgulhava de remontar a Quilderico por um filho engendrado atrás da porta». Perguntar-se-á quem foi Quilderico e qual a sua importância. Quilderico ou Childerico I (filho de Meroveu), Childerico II e Childerico III foram reis da mais antiga dinastia franca, a dinastia merovíngia (séc. V a VIII). Os reis merovíngios     consideravam-se e eram considerados descendentes de um filho de Jesus Cristo com Maria Madalena. Sabe-se que a busca de “heróis” fundadores de linhagens foi uma constante desde os primórdios das monarquias ocidentais. Esses “heróis” poderiam ser figuras religiosas, mitológicas, literárias ou históricas. Sabe-se que algumas famílias da nobreza portuguesa pretenderam descender dos merovíngios. É uma pretensão estranha, por contrária à política do Vaticano, renegadora de Maria Madalena e da sua relação com Cristo. Mas onde terá Aquilino recolhido essa informação genealógica dos Azevedos? À «rima de papéis velhos» ou à imaginação pícara?
Depois das divagações genealógicas, regressemos à narrativa dos amores de Luís da Cunha com Joana de Azevedo. Entre os dois primos, sucede o enamoramento, a paixão e a fuga estrondosa, provocada pelos sentimentos do casal, acrescidos da vontade expressa de Joana: «Porque me não leva daqui, primo?» (p.60). A fuga combinada complica-se por falta da chave no lugar habitual, segue-se o arrombamento da porta do convento e a travessia em bote do rio Minho, entre a vida e a morte, com promessa de boa capela à Senhora do Amparo. Chegados à Casa Grande, casaram de imediato, perante a surpresa da família do noivo e sem participação à família da noiva, situação geradora de constrangimento e de conflito.


O capítulo IV termina com o casamento apressado, na capela da Senhora do Amparo da Casa Grande de Romarigães, realizado pelo padre-mestre, Reverendo Sebastião Mendrugo, que «incorria na pena de anátema», por se substituir ao pároco e por não ter a licença eclesiástica para o casamento – desobediências às imposições do Concílio de Trento, capazes de tornarem o casamento nulo, se contestado. Acresce à problemática eclesiástica o crime de rapto de Joana de Azevedo de um convento de La Guardia.
(Saliente-se a importância do padre Sebastião Mendrugo como o informador de dados para esta parte da narrativa, uma vez que ele é apontado por Aquilino, na introdução à obra, como autor do caderno, datado de 1680, com o título «Livro que há-de servir ao assentamento das coisas notáveis que assucederam na Casa Grande de Romarigães, também chamada Quinta de Nossa Senhora do Emparo».)
No que respeita à linhagem da família Azevedo, o capítulo V completa o anterior. Nele se apresenta a contenda, entre a família de Luís de Antas da Cunha e a família de Joana de Azevedo da Portela das Cabras, em consequência do referido casamento.
Na primeira parte, assiste-se à diligência diplomática de Domingos da Cunha, o pai de Luís, que, ciente da gravidade do problema, escolheu Florêncio da Cunha Beça, fidalgo da Ribeira do Cávado, destro em etiqueta e bom conversador, para embaixador da causa junto do pai de Joana, «Simão Vilas Boas e Azevedo, senhor da Portela das Cabras», de quem ainda era primo (p.73).
Queixava-se Florêncio de os seus familiares terem sido «esbulhados pelo primeiro morgado, Lopo Dias de Azevedo», de senhorios, a pretexto «vero ou falso», de que, a soldo de Castela, seu tetravô pretendera matar o Mestre de Avis. Certo é que Lopo Dias de Azevedo tinha sido muito próximo do Mestre de Avis, uma vez que fora por ele armado cavaleiro, imediatamente antes da batalha de Aljubarrota.
Na posse dos referidos conhecimentos, o leitor acompanha Florêncio Beça, que, com «grande estadão» e significativos presentes, chegou à casa «do senhor da Portela das Cabras». Este atendeu «o primo» com «engulho», pois a notícia do casamento já tinha chegado e fora recebida em pé de guerra pela ofensa-crime cometida. A descrição de Simão de Azevedo revela a antipatia do narrador e de Florêncio Beça. O discurso proferido pelo pai de Joana começa por colocar a tónica nas origens paternas do noivo, Luís de Antas da Cunha, nomeadamente, nos avós, o abade Gonçalo da Cunha e a «manceba» Maria Roriga, para concluir não poder admitir na «linhagem gente de tal costado». Certamente esta atoarda apresenta a questão aquiliniana do seu nascimento e vai alicerçar o discurso narrativo de Florêncio Beça, em defesa da progénie clerical, citando o caso do «grande Dr. Francisco de Sá de Miranda, ali da vizinha Quinta da Tapada» e do prezado Bento de Azevedo, filho do Padre Sebastião de Azevedo, abade de Galegos, e faz o rol de Azevedos, assim, originários (pp.76-77). Acrescenta algo de muito curioso na bastardia: o que fazia a fidalguia em Portugal era o varão, «olhava-se para quem era o pai»; quanto à mãe «basta que seja formosa e honesta, vaso de eleição na pessoa e não no sangue».
A defesa da progénie clerical, tão cara ao autor, com «o grande Dr. Francisco de Sá de Miranda» à cabeça, poderia ser considerada uma motivação para a importância discursiva deste episódio.
Todavia, Simão de Azevedo não se deixa convencer e declara que, na sua prole, manda ele e que Joana «está riscada do livro dos Azevedos», acrescentando aquilo que vai gerar consternação no emissário: «a justiça o confirmará, se Deus quiser». E informa que a queixa transitou para a mesa da Consciência e que o Tribunal do Santo Ofício de Coimbra decidirá, uma vez que a Inquisição de Espanha está a organizar o processo. E mais declara que «os Azevedos e Vilas Boas só ficarão limpos quando os dois [Luís e Joana] subirem de sambenito e carocha na cabeça, o patíbulo da Praça da Lã». Em defesa da tese do pai de Joana, juntam-se o meio-irmão e a madrasta, tendo esta acrescentado que, naquela família, só faltava um santinho, pois já havia «navegadores, poetas, generais, um bispo, um trinchante, até um inquisidor». O papel de santa estava destinado a Joana, que o aceitara e abraçara de livre vontade.
(Saliente-se o “estilo heroi-cómico” da última parte do diálogo, nas falas de dona Floribela, a madrasta de Joana.)
Florêncio Beça viu recusada a sua missão pacificadora e partiu sem delongas com a noção de que o caso era insolúvel pela via diplomática e muito difícil de resolver por outra via.


A narrativa salta para Romarigães onde encontramos Domingos da Cunha nos preparativos da «sege que em hora iludida destinara a brilhar na capital de Espanha», a fim de viajar para Lisboa em busca da solução para o grave problema familiar. A viagem é interrompida, ainda antes de Barcelos, por um homem que  indica o caminho para Braga, de modo a passarem pela Portela das Cabras, o que evidencia o conhecimento do autor desse itinerário, quando escreve «se querem marchar pelo seguro e é certo que vão para o Sul, metam a Vila Verde pelo Rio Mau» e, mais adiante, «o melhor caminho é por Nevogilde» - de  facto esta é a alternativa, ainda hoje, para quem não quiser seguir na estrada de Ponte de Lima, Corvos, Braga. Atravessavam terras de Simão de Vilas Boas e Azevedo e por homens dele foram interrompidos na viagem e atacados, saindo vencedores os homens de Domingos da Cunha, que comenta: «Mas de que raça ele é, este Simão de Vilas Boas e Azevedo, neto de Quilderico!» (p.87).
Em Lisboa, Simão de Azevedo  tinha grandes conhecimentos, «gente toda ela parcial do infante e da rainha», mas Domingos da Cunha tinha por certo Castelo Melhor e o Bisconde, a quem seu pai comprara Romarigães. O Bisconde vislumbrava apenas uma solução: fazer de Luís familiar do Santo Ofício. E assim aconteceu por intercessão do filho do conde de Castelo Melhor.

A narrativa continua com os descendentes de Joana Azevedo e Luís de Antas da Cunha, possuidores da Casa Grande de Romarigães, com fases de sucesso e insucesso, até à perda total da propriedade.


[1] Morgado de Azevedo: «O senhorio de Azevedo remonta à época medieval, constando o apelido no Livro Velho de Linhagens, segundo o qual D. Godinho Viegas de Azevedo, rico-homem do tempo do conde D. Henrique teria sido o primeiro a usá-lo. A casa-solar situa-se no concelho de Barcelos. São oriundas desta família diversas personalidades, entre as quais, Lopo Dias de Azevedo que acompanhou D. João I na batalha de Aljubarrota, tendo recebido em recompensa o senhorio de São João de Rei. Vários membros da família serviram no Norte de África e na Índia» (http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4223343).