terça-feira, 4 de junho de 2019

O PRAZER DE LER em O Velho que lia Romances de Amor



Luís Sepúlveda conseguiu o milagre verbal escrito de apresentar ao leitor uma personagem quase analfabeta com um enorme prazer de ler «romances de amor».
Recordo uma senhora centenária com o mesmo apetite por romances de amor ao longo da sua longa vida.
Voltando a O velho que lia romances de amor de Sepúlveda, o leitor encontra aí as fases da descoberta do saber ler (votação), da descoberta do livro (São Francisco), da descoberta do tipo de obra para aquele leitor (Coração de Edmundo d’ Amicis, O Rosário de Florence Barclay), do onde e do como saborear a leitura. Algo de muito raro conseguiu contruir Sepúlveda – muito agradecida por isso.
Costumo dizer àqueles que ainda não encontraram o tipo de leitura que lhes agrada: Prova, primeiro é preciso provar até encontrar a leitura prazerosa.
Por muito que se tenha dito acerca do prazer de ler, quem leva a palma é Luís Sepúlveda com o seu velho António José Bolívar Proaño, «um velho de corpo seco que não parecia importar-se com o facto de carregar com a alcunha de prócere» (p.14)[1].
Sabendo que «prócere» significa «homem importante de uma nação», estudemos a semântica do nome do velho. José António Bolívar (1783-1830) é Simão Bolívar, herói da descolonização e independência da América Espanhola. Leónidas Proaño (1910-1988) é equatoriano e foi chamado «o bispo dos índios».
Com os dados explicativos da escolha do nome, o leitor pode entender a intencionalidade do autor: conferir certamente ao protagonista a heroicidade pioneira de um branco defensor dos índios e da natureza, considerados livres. Essa liberdade natural teria de ser preservada da subjugação ambiciosa do colonialismo, a bem do planeta e do universo.
António José Bolívar Proaño fora casado com Dolores Encarnatión Otavalo, uma índia do grupo indígena Otavalo. Com Dolores conhecera o amor, o desgosto da infertilidade pelo olhar exterior e preconceituoso, e a perda. Com isso, talvez se queira explicar o seu gosto pelos romances de amor, definido assim pelo padre que lhe dera o contacto direto com um livro - a biografia de S. Francisco:
«- Bem, [os romances de amor] contam a história de duas pessoas que se conhecem, se amam e lutam por vencer as dificuldades que as impedem de ser felizes» (p.50).
A leitura feita pelo velho, descrita no início do capítulo terceiro, vale mais do que qualquer tratado. Sentimo-lo a degustar cada sílaba, cada palavra, cada frase, enquanto se vai apoderando do significado até à apreensão do sentido do texto, que vai relacionando paulatinamente com os seus saberes de experiência feitos. Contudo, o autor não deixa de referir aquilo que não pertence a essa experiência, como é o caso de Veneza. Esse assunto desemboca em conversa interessante, depois de uma leitura em voz alta feita pelo velho ao grupo dos caçadores da onça (pp.90-92), interrompida pela própria onça, que irá ser abatida corajosamente por António José Bolívar Proaño.
4 de junho 2019
Maria José Domingues


[1] As páginas indicadas pertencem a O Velho que lia Romances de Amor – Luís Sepúlveda, Edições ASA, 1ªedição, 1993.