terça-feira, 9 de setembro de 2014

Feminina - poema de Mário de Sá Carneiro



Feminina de Mário de Sá Carneiro

«Mas antes, fui buscar o poema do Mário Sá-Carneiro. 
Pensa no que pensaria ele acerca da mulher... E qual a aproximação a FPessoa... Fica no ar a ideia para ambas.
Guida»

«Feminina é uma peça para um actor»[1]



Mário de Sá-Carneiro encontrava-se em Paris, em desespero monetário, como se pode ler nas cartas enviadas ao amigo Pessoa, em 1916. Acresce a «Zoina» em progressão suicida.

Fernando Pessoa recebe do amigo Sá-Carneiro uma carta de Paris, datada de 16 de Fevereiro de 1916, a dois meses do suicídio. Nela, o autor revela-se duplicado no Mário paúlico de 1913, que não quer encontrar e que renega - ainda que ele tenha sido «mais feliz…pois acreditava ainda na sua desolação… Enquanto que hoje…» - para se apresentar como o Sá-Carneiro de 1916 a entrar no café Riche, no qual existe sempre o mesmo homem a ler embebidamente o Temps – esse homem é uno e estará eternamente no café a ler o jornal.
Porém ele, Sá-Carneiro, à data, apresenta «sem literatura má, sem paulismo […] a verdade nua e crua», no poema enviado e incluído no texto dessa mesma carta[2]:

«Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa
E eu quero por força ir de burro!»

Refere um outro poema a que chama «um soneto mau», esse vai à parte[3]. Não está integrado na carta como os outros, e isso faz toda a diferença, por não entrar no ato linguístico de fala à distância.

Envia ainda outro poema, que apresenta como «um poema irritantíssimo, “Feminina”», que começara na noite anterior quando lhe roubaram o chapéu-de-chuva. Antecede-o a expressão:
«Pano de amostra:

Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.

Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer «potins» - muito entretida.

Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.

Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...

Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar...»

O poema acaba aí e a carta continua: «Como você vê - isto promete, hein? Quando arranjar por completo o poema, enviar-lho-ei. Mas vá-me dizendo as suas impressões». Sabe-se o quão importantes eram para ele as impressões pessoanas. Lê-se na carta de 13 de Maio de 1913: «Escrevo uma coisa e logo tenho a ânsia de saber o que o meu amigo pensa dela. É um entusiasmo, uma ansiedade… tenha paciência». 

Comentário: Essa carta e os poemas enviados são reveladores da angústia autêntica, embora poeticamente encenada. Enquanto o destinatário Pessoa queria ser tudo e criava heterónimos para organizar mentalmente esse tudo literário, Mário de Sá-Carneiro, no ato de “outrar-se”, duplica-se: vivo/morto, homem/mulher, «meu intento todo loiro»/ «o amante loiro/ o rapaz gordo e feio (ele mesmo, visto de fora). Sobre o poema Feminina, considero que os problemas financeiros do autor poderiam estar na base motivadora do poema, dentro da lógica masculina de que seria mais fácil a uma mulher de vaudeville conseguir viver em Paris sem dinheiro do que a ele, descrito no poema como «um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...», que sabemos desesperado por falta de dinheiro para aguentar a vida de artista em Paris.

Fernando Cabral Martins designa a referida carta, de 16 de Fevereiro de 1916, de «carta-poema». Sobre o primeiro poema, ele identifica o eu literário que tem «na carta-poema um nome: Sá-Carneiro». E considera o poema comparável a «um acto de fala», embora seja «um acto de escrita». Para concluir que é «um acto performativo, situado no momento preciso e destinado a obter um efeito». O poema está dentro de uma confidência sobre o estado de espírito do destinador, todavia, para não assustar demasiado o amigo, dá-lhe um tom carnavalesco e um ritmo acelerado. Mas a História veio confirmar que o poema Fim era «um anúncio da sua própria morte», em desvalorização, em celebração irónica.
Segue-se o «pano de amostra»: Feminina. Continuando com Fernando Cabral Martins, ele escreve que, na carta, «ao interromper segunda vez a corrente confessional, num ritmo agora mais lento, mas tão livre quanto o de Fim, é como se passasse da melancolia para a representação de um vaudeville um pouco sórdido. A seguir a carta pode passar às informações miúdas próprias das cartas de longe, como se não se tivesse passado nada. E, de certo modo, há um efeito último que se produz, não sobre o destinatário, mas sobre o destinador: a carta a Pessoa, desenvolvendo-se em rápidos “Scenários de mutação” num music-hall de papel, da pirueta circense à pequena comédia de costumes, funciona como um processo catártico. O instante fixa-se, a carta transporta à distância um gesto. A narrativização do lirismo, a liricização da narrativa, a confessionalidade do fingimento e a pose de sinceridade conjugam-se na construção do texto da carta, que, ao mesmo tempo, é e não é consciente de si como literária».
Acerca dos dois poemas inseridos no texto da carta em questão a Fernando Pessoa, Cabral Martins considera-os «textos no futuro». E considera a carta, texto do presente, um texto múltiplo fixador do instante.
O poema «Feminina tem servido para fundamentar o diagnóstico psicanalítico de um Sá-Carneiro homossexual, ou, como se impõe neste caso, transsexual e até esquizofrénico. Mas, de facto, é a tentativa de construção do poema dramático» com dois eus, um masculino e um feminino, subordinada à expressão de alguém que sonha: “Eu queria ser mulher” - «sigla anafórica que cria sucessivas imagens da mulher como ela é na fantasia do eu masculino. Mas abre também para as imagens que essa mulher tem dele – ou que ele pensa que ela tem dele». Nomeadamente a «do rapaz gordo e feio de modos extravagantes», a auto-imagem em distanciamento do Aquele Outro - «Esfinge gorda».

               Estamos perante génios literários, os dois amigos, em diálogo à distância, puxando um pelo outro na Arte literária.

E Pessoa viria a escrever, após o suicídio, no poema a Sá-Carneiro: «Como éramos só um, falando! Nós/ Éramos como um diálogo numa alma.»

David Mourão Ferreira compara os dois amigos a Ícaro e Dédalo e também a dois pastores numa écloga, dialogando sobre as suas conceções literárias.

Maria José Domingues



[1] MARTINS, Fernando Cabral, O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro, Editorial Presença, 1997 – esta obra forneceu as citações sobre o assunto abordado.
[2] Esse poema viria a ser intitulado Fim, posteriormente à sua morte.
[3] O soneto foi intitulado El-Rei
Quando chego - o piano estala agoiro,
E medem-se os convivas logo, inquietos –
Alargam-se as paredes, sobem tectos -
Paira um luxo de Adaga em mão de Moiro.

Meu intento, porém, é todo loiro
E a cor de rosa, insinuando afectos.
Mas ninguém se me expande... Os meus dilectos
Frenesis ninguém brilha! Excesso de Oiro.

Meu Dislate a conventos longos orça.
Pra correr minha Zoina, aquém e além,
Só mística, de alada, esguia corça...

- Quem me convida mesmo não faz bem:
Intruso ainda – quando, à viva força,
A sua casa me levasse alguém.