domingo, 8 de fevereiro de 2015

Corvo de Edgar Allan Poe e Mar me quer de Mia Couto



Mar me quer de Mia Couto é uma construção narrativa em prosa poética e o Corvo é um poema de cento e oito versos. A primeira obra lê-se com um sorriso e a segunda com a melancolia pretendida pelo autor. Explique-se então a junção reflexiva dos dois textos.
Ao ler Teoria da Literatura II – textos dos formalistas russos apresentados por Tzvetan Todorov, em «A construção da novela e do romance» de V. Chklovski, encontrei-me, tal como o autor, em busca da difícil definição de novela, que ele declara ainda não ter encontrado, mas foi no artigo de B. Eikhenbaum «Sobre a Teoria da Prosa» que me deparei com a teoria que poderia estar na base da construção de Mar me quer.
Depois de afirmar a diferença entre romance e novela, declara Eikhenbaum que a novela se constrói «com base numa contradição, numa falta de coincidência, num erro, num contraste», embora isso não baste. Verifica-se em Mar me quer que a narrativa tem por base o desaparecimento do corpo da mulher amada  no mar, apesar das buscas do amado, o que poderia ser considerado um erro da natureza: o desaparecimento de um corpo. Esta não seria a incógnita a resolver, mas antes a razão pela qual Luarmina não cede ao desejo sexual de Zeca Perpétuo, o narrador homodiegético, a quem ela incita a contar as histórias reais da sua vida. E serão essas histórias e o desejo de Zeca que farão progredir a narrativa até ao desvendar da incógnita quase no final da obra. Esse acontecimento narrativo - «Eu sou essa mulher» - explica a recusa da amada do pai Agualberto ao desejo sexual de Zeca, que se deita na esteira a ouvir o mar e a sonhar, na ambiguidade do último parágrafo da narrativa.
Voltando à classificação de novela, Eikhenbaum traz à colação a teoria poética de Edgar Allan Poe sobre a construção do seu poema emblemático The Raven (O Corvo). Poe defende o poema que não ultrapasse duas horas de leitura em voz alta, por isso Eikhenbaum aplica essa teoria à construção da novela por oposição ao romance, uma vez que Poe também valoriza a leitura do «todo de uma assentada», para que o leitor não se prive «da imensa força que confere a totalidade» e não se perca o efeito único que o autor pretende produzir com a obra. Em «Filosofia da Composição», Poe declara que, com O Corvo, pretendia um efeito de grande melancolia e constrói o poema com essa intencionalidade. O refrão teria de traduzir ao máximo a intencionalidade para produzir o efeito máximo pretendido. E chegou a «Never more» (Nunca mais). Mia Couto escolheu para o cantochão de Luarmina Mar me quer. Essa expressão não hifenizada surge ao leitor como a corruptela de mal-me-quer na cantilena «bem-me-quer, mal-me-quer», usada no desfolhar da flor, em busca da informação sobre o amor ou desamor de alguém. No caso de Luarmina, o cantochão abre em amplitude de significado à medida que a narrativa progride. Começa por ser  a cantilena que espalha som e cor à sua volta, para depois se entender que poderia ser a busca da confirmação do amor de Agualberto Salvo-Erro nas histórias de verdade pedidas encarecidamente ao filho dele - histórias essas que vêm confirmar um amor intenso e infinito. Por outro lado, ao contrário de todas as expectativas, o mar não a engoliu e ela salvou-se (mar não me quer), mas sofreu uma transformação engordando e engordurando-se, de modo a esconder a sua enorme beleza que endoidecia os homens. Essa transformação poderia ser vista como uma prova de amor e de fidelidade: «Eu já não desengomo lençóis», responde assim à provocação sexual de Zeca. E num momento de frouxidão em que se entrega ao mar e aos caracóis, bem como aos dedos de Zeca, ela interrompe-o com um grito: os peixes não têm olhos. Dentro do mundo mágico da obra, talvez fosse a mensagem dos «olhos de tubarão» do apaixonado Agualberto, que se entregou ao mar, onde acreditava que vivia a sua amada.
Para Poe, todos os pormenores e todas as palavras contribuem para o efeito principal escolhido pelo autor. Diria que isto se passa com Mar me quer. Embalados pelo mar dos pescadores e da paisagem e pela toada do amor/desamor, «bem me quer, mar me quer», percorre-se a obra com prazer e sorriso, até ao desenlace: «Eu sou essa mulher». Então a paisagem narrativa faz todo o sentido: Luarmina quer saber tudo acerca do seu amado através do filho dele, por isso quer as histórias de vida de Zeca, que são as histórias de Agualberto e da sua família.
Na teoria de Poe, o autor tem presente o desenlace da obra na sua construção. Em patamares de cada um dos oito capítulos de Mar me quer, vai-se subindo a ‘colina’ da narrativa, mas só no cimo se descortina toda a ‘paisagem’ narrativa, pelo que poderá concluir-se que o desfecho teria estado presente desde o primeiro momento da sua construção, tal como defendia Edgar Allan Poe.
Maria José Domingues