sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Sá de Miranda: «Comigo me desavim»



Sá de Miranda: Comigo me desavim [1]

«Sem Miranda não tínhamos um Bernardes; sem Miranda não havia um Ferreira, um Caminha; sem Miranda não florescia um Camões» - Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

Sá de Miranda: Comigo me desavim
Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?
de Francisco Sá de Miranda
(1481-1558) 
Dentro do tema quinhentista «imigo de si», estas trovas em medida velha exprimem o conflito interior da discrepância do eu poético consigo mesmo, sem fuga possível. O paradoxo consiste na coabitação do eu duplicado e discordante. Dentro do eu poético, o eu e o outro eu conflituam em desacordo e inimizade sem solução.
O mesmo tema é trabalhado por muitos poetas tornando-se um tema que atravessa os tempos, desde Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro e Camões, até Alexandre O’Neil, Jorge de Sena, Vasco Graça Moura e Maria Teresa Horta, entre outros.
Ouçamos Alexandre O’Neil (1924-86) cruzando ironicamente dois poemas de poetas de tempos bem distantes entre si - Sá de Miranda com o poema acima citado e Mário de Sá Carneiro (1890-1916) com o poema 7, em Indícios de Oiro (7 / Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: /     Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro. )

Sá de Miranda Carneiro de Alexandre O’Neil

comigo me desavim
eu não sou eu nem sou o outro

sou posto em todo perigo
sou qualquer coisa de intermédio

não posso viver comigo
pilar de ponte de tédio

não posso viver sem mim
que vai de mim para o Outro


Ao gosto das cantigas de amigo e dentro da temática mirandina, Maria Teresa Horta cria o poema com um sujeito lírico feminino dividido interiormente entre ser senhora de si ou ser senhora de outro. Exprime-se o conflito da autonomia da mulher no silêncio da incompreensão geral e, em simultâneo, a rebeldia da publicação desse conflito. Em 1974, a obra que contém o poema abaixo citado adota o seu título:
Minha senhora de mim de Maria Teresa Horta
Comigo me desavim
minha senhora
de mim

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito
Minha Senhora de Mim, Editorial Futura, 1974 - Lisboa, Portugal.


[1] Este trabalho tem por base textual «”Comigo me desavim”, “Minha senhora de mim” e Minha senhora de quê”» de Sérgio Guimarães de Sousa, in Estética e Ética em Sá de Miranda, Opera Omina, 2011.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Regresso de Saramago: uma rosa para Pilar

Regressam as cinzas, pois o espírito estará sempre com os seus leitores, aqui ou noutro lugar do mundo.
Ler Saramago é sempre encetar uma viagem difícil, por isso, muitos desistem. O narrador saramaguiano não dá tréguas ao pensamento e à reflexão. Tudo tem o seu quê, mesmo a expressão mais banal.Vira-a do avesso, espreme-a e a ironia discursiva faz despertar um sorriso e a vontade de falar com alguém acerca do assunto.
Estudar uma obra de Saramago aumenta o deleite do leitor pelo que o texto revela do universo humano, sobressaindo a valorização do povo que ele tão bem conhece e tão bem dá a conhecer de uma forma dinâmica e mágica. E recordo a figura da jovem Maria com a tigela da terra que brilha nas mãos, em o Evangelho segundo Jesus Cristo. 
Saliente-se a beleza do discurso amoroso, em obras como o Memorial do Convento, para o par Blimunda e Sete-Sóis, e o Cerco de Lisboa, para o par Maria Sara e o revisor. O valor simbólico daquela rosa de amor que circula entre as duas últimas personagens referidas colheu-o Pilar Del Rio,aquela que muito ama e muito foi amada. Para ela irá sempre essa rosa.

quinta-feira, 17 de março de 2011

A arte: «uma oferenda da consciência ao ser humano»


Continuando a ler e a reflectir sobre as palavras de António Damásio em O Livro da Consciência, partilho, neste texto, citações acerca da cultura e da arte.

  • «A biologia e a cultura são interactivas».
  • «Em última análise, como a arte está profundamente enraizada na biologia e no corpo humano mas pode elevar os seres humanos às mais altas cumeadas do pensamento e do sentimento, as artes tornaram-se numa via para o refinamento homeostático que os seres humanos acabaram por idealizar e ansiaram por alcançar, o equivalente biológico de uma dimensão espiritual nas questões humanas».
  • «Em resumo, a arte prevaleceu na evolução porque teve valor para a sobrevivência e porque contribuiu para o desenvolvimento do conceito de bem-estar». 
  • A arte «ajudou a consolidar grupos sociais e a promover a organização social»; 
  • A arte «apoiou a comunicação»; 
  • A arte «compensou os desequilíbrios emocionais causados pelo medo, pela raiva,, pelo desejo e pela mágoa»;
  • A arte «provavelmente abriu as portas ao longo processo de estabelecimento de memórias externas da vida cultural».
  • A arte «é uma das mais espantosas oferendas da consciência aos seres humanos».

quarta-feira, 16 de março de 2011

Lendo ANTÓNIO DAMÁSIO: "o inconsciente genómico"

 A NARRATIVA E O INCONSCIENTE GENÓMICO

Sempre me interroguei sobre a origem do denominador comum das narrativas fundacionais da literatura, ao ler a Bíblia, os poemas homéricos, as Mil e uma Noites, as lendas e narrativas medievais, as recolhas dos contos populares, etc.
A vontade humana de narrar ao longo dos tempos revela um emissor (colectivo ou singular) consciente do valor da perpetuação da memória de uma colectividade que não se quer perdida e um receptor colectivo atento e capaz de transmitir a mensagem.
Para além disso, o que me parece unir as referidas narrativas seria o comportamento humano despoletado pelos sentimentos do amor e do ódio atravessados pelo sofrimento e pelo medo e pelos seus contrários. Esses sentimentos e as respectivas emoções associadas poderiam ser considerados as traves da estruturação das acções arquitectadas discursivamente entre tensões e equilíbrios, na narrativa universal.
A leitura de O Livro da Consciência   aclara o tal denominador comum quando Damásio escreve que as narrativas  «giram, em grande medida, em torno da força dos programas emocionais inspirados pelo genoma» e esclarece que «o inconsciente genómico é em parte responsável pela uniformidade que marca  uma grande parte do reportório de comportamentos humanos».

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Fernando Pessoa o poeta em Lisboa, poema de Sophia de Mello Breyner, na voz de Luís Miguel Cintra:



segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O fio de Ariadne

3 de Março de 2010: o engasgue absoluto

Morrera engasgada com um livro produzido nos seus cem anos de solidão autoral do género feminino. Escrevera-o lentamente ao longo de uma vida e devorara-o numa manhã até sufocar.
Lera e magicara demais, dizia-se encolhendo os ombros, como quem diz que isso faz muito mal e, por isso, mais vale não ler ou até ficar analfabeto. Afinal tanto se fica mal da cabeça de uma maneira como da outra. De tanto ler a cabeça  fica vazia e de não ler também fica. Venha o diabo e escolha, mas o destino é sempre a morte. Assim ou assado. Tanto faz. Todos temos de morrer, etc. - discursos que se dizem por dizer e que compõem a conversa.
Outros, porém, sobressaltados, questionavam-se. Que livro seria aquele? Nada que valesse a pena, já está tudo escrito; que poderia ela acrescentar, nada; fez muito bem em engoli-lo, mas devia fazer isso com método, com muita água e aos poucos, para poder incorporá-lo no seu ser e assim publicava-o sem ninguém saber: somos o que comemos. Talvez esta verdade tenha influenciado o acto suicidário atabalhoadamente realizado, como de costume, em imperfeição.

Lazdo, Maria José, O Fio de Ariadne (Diário de 2010)

domingo, 2 de janeiro de 2011

SUCESSOS PORTUGUESES EM 2010

É tão raro ler ou ouvir, na comunicação social, mensagens optimistas, que não posso deixar de dar os meus parabéns ao semanário Expresso pelo texto «SIM, NÓS CONSEGUIMOS! Viagem ao Portugal que vale a pena», na Revista Única de 30 de Dezembro, assinado por uma equipa de 13 jornalistas..

Para que não nos esqueçamos, registam-se alguns dos sucessos referidos nesse texto:
  •  A Mortalidade infantil desceu de 77,5 em permilagem em 1960 para 3,6 em 2009 - a Organização Mundial de Saúde reconhece Portugal como uma referência nesta área.
  • Ciência: «Cérebros que brilham»
  • Portugal tem agora 7,2 investigadores em permilagem da população activa, o que lhe permitiu atingir a média da OCDE e ficar a par da Alemanha.
  • O Instituto Pedro Nunes da Universidade de Coimbra foi considerado o melhor incubador do mundo para start-ups na área das tecnologias da informação.
  • Registou-se uma das maiores percentagens europeias de mulheres portuguesas a trabalhar em Ciência e Inovação.
  • Os alunos portugueses melhoraram significativamente os seus resultados no maior teste internacional na área da educação: PISA (Programme for International Student Assessment).
  • A actual cobertura do pré-escolar, quase nos 90% entre as crianças de 4 a 5 anos.
  • Empresas de sucesso: calçado, Efacec,  Ndrive, Fepsa, Alert, etc, etc.
  • Talentos dentro e fora do país.
  • «O Design nos seus vários domínios é o mais promissor produto exportativo nacional e o elo mais forte das nossas indústrias criativas».
  • Língua Portuguesa: 240 milhões de falantes! Acrescenta-se ainda a facilidade que os portugueses têm em aprender outras línguas.
  • O Desenrascanço - «uma marca nacional».
  • A dieta mediterrânica.
  • Vinhos: «litradas de orgulho nacional».
  • Cortiça: rolhas, decoração, sapatos.
  • Energias renováveis «no pelotão da frente»
  • Solidariedade: «dar muito com pouco».
  •  
    Comecemos 2011 com optimismo,  ao arrepio de comunicação social pessimista. Será que dizer mal vende bem?