domingo, 26 de maio de 2019

A leveza em Italo Calvino




«– Há uma coisa que tu não sabes – acrescentou Kan. A Lua reconhecida deu à cidade de Lalage um privilégio mais raro: o de crescer em leveza».

«Crescer em leveza» talvez possa ser lido como fazendo parte do projeto de escrita de Calvino. Formulado o desejo da leveza na obra de 1972, As Cidades Invisíveis, Calvino vai teorizá-lo, em 1984-85, na primeira lição de Harvard, em Seis Propostas para o próximo milénio.


1.  A leveza em As Cidades Invisíveis de Italo Calvino

No início do quinto capítulo, o diálogo de Kublai Kan com Marco Polo termina com a citação da epígrafe deste texto.
Vejamos qual a relação das cinco cidades apresentadas nesse capítulo V com a «leveza».

 Marco Polo dirigindo-se a um público alargado, de acordo com a terceira pessoa do plural usada, mas fazendo notar o possível descrédito dos ouvintes, inicia a descrição de Otávia, a inacreditável cidade teia de aranha, desta forma: «Se quiserem acreditar, muito bem». De facto. uma cidade teia de aranha, era inacreditável. Apresenta então a curta descrição de Otávia, espaço aéreo entre duas montanhas: cidade leve, mas perigosa para os seus habitantes.
Calvino valeu-se da metáfora «teia de aranha» para introduzir a ideia imediata de ultra leveza. Mas a beleza e a perfeição da teia de aranha perderam-se, e resta, como imagem, apenas um arremedo leve e perigoso feito pelos homens.


Ersília é também uma cidade teia de fios aéreos pretos, brancos e cinzentos, traduzindo «relações intrincadas que procuram uma forma». A busca da perfeição da forma faz-se pela construção contínua de outra Ersília melhorada, de fios menos intrincados ou menos ensarilhados. Os fios desaparecerão com a comunicação sem fios, mas as relações humanas poderão ser de aperfeiçoamento contínuo.

Acima das nuvens, estende-se Bauci, a cidade sobre andas. Os seus habitantes raramente pousam o pé na terra, mas observam meticulosamente a superfície. A leveza pela arquitetura, mas não a leveza da construção alicerçada em poderosos pilares. Le Corbusier inspirou Calvino? Talvez.

 
 
Le Corbusier Date: 1960 - 1962; Estonia[1]



Manes e Penates. deuses minúsculos até ao invisível, habitam Leandra e julgam-se a sua alma. Preocupam-se com a cidade e tecem projetos, sempre em discussão. A leveza resultaria da pequenez que permitia aos deuses passear pelos caixilhos e tubos e serem «alma» - palavra criadora de uma imagem sem peso.

      Em Melânia, a vida decorre como numa eterna peça de teatro, tendo na devida conta as levas de atores que se sucedem na roda da vida: aos mortos sucedem os vivos, em contínuo. O texto da peça é alterado ao longo do tempo que excede a vida de um ser humano, por isso, ninguém dá conta. A imagem da vida como peça de teatro sem que o ator tenha consciência disso, dá uma leveza especial ao desempenho e permite a recriação do texto ao longo do tempo.
 
        2. A leveza em Seis Propostas para o próximo milénio

     Calvino inicia as seis propostas pela "Leveza" da seguinte forma:

    "Depois de haver escrito ficção por 40 anos, chegou o momento de buscar uma definição global de meu trabalho: no mais das vezes, minha intervenção se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por tirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem".

De facto, se analisarmos As cidades Invisíveis na perspetiva da leveza, poder-se-á referir a leveza dos diálogos e da narrativa, libertando a pura descrição das cidades, em textos curtos e nem sempre leves.

Mas o que Calvino apresenta na sua conferência é  uma listagem de autores que trabalharam a leveza (Lucrécio, Ovídio, Boccaccio, Guido Cavalcanti, Dante, Shakespeare, Cervantes, Cyrano, Kafka, etc.)  e de que modo o conseguiram fazer. .Inclui As Mil e Uma Noites e enumera processos capazes de gerarem leveza:: «um aligeiramento da linguagem», «uma imagem figurativa da leveza«, «a gravidade sem peso», a dança, «a melancolia - a tristeza que se torna leve»» , «melancolia e humor misturados», a «conceção atomista do universo», «figuras suspensas no ar» (tapetes voadores, cavalos que voam, génios a saírem de lâmpadas, etc.), a lua que comunica uma sensação de leveza, etc.

Contra «o mundo que estava a ficar todo de pedra», Calvino  considera a  leveza um valor literário defensável e torna-se seu paladino.

Bibliografia:
Calvino, Italo - As Cidades Invisíveis, Publicações D. Quixote, 2015, Leya, SA.
Calvino, Italo - Seis Propostas para o próximo milénio (Lições americanas), 1990, Editorial Teotema.

Braga, 26 de maio 2019.
Maria José Domingues 











[1] https://www.wikiart.org/en/le-corbusier/la-ville-radieuse-the-radiant-city-1935





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