terça-feira, 20 de novembro de 2018

Jerusalém de Gonçalo M. Tavares - uma leitura reflexiva


«Cada vez mais, a literatura é essencial para despoletar o pensamento» - G M. Tavares

Jerusalém[1] pertence a O Reino de Gonçalo M. Tavares. O título é rico de significado. Partindo da denotação geográfica, enriquece-se com o valor religioso de capital das religiões abraâmicas com epicentro na Bíblia, obra central da cultura judaico-cristã, com citações várias ao longo da obra, de entre as quais se salienta o salmo 136 ou 137, atribuído a «Jeremias para David», na situação histórica do cativeiro da Babilónia, com transcrição de dois versos: «Se me esquecer de ti, Jerusalém,/ seque a minha mão direita». Se esse e outros textos bíblicos se presentificam na obra, nela se encontra também a citação de um texto de Hannah Arendt (pp. 141-142) sobre o inferno dos campos de concentração nazis[2].
Depois da finalização da obra, tarde para o leitor, o autor avisa das citações da Bíblia e de Hannah Arendt.
Apesar do título judaico, as personagens, em destaque de subtítulos, nos trinta e dois capítulos, têm nomes alemães. Essa opção literária desvia o leitor do Médio Oriente para a Europa, colocando-o na Alemanha. O nome Jerusalém associado à onomástica alemã abre a pista da leitura do anti-humanismo nazi, a violência extrema, banalizando o mal.
Nesse contexto, o leitor recorda Hanna Arendt, filósofa judia-alemã, e os seus artigos sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém. A filósofa trabalhou sobre a origem do mal e o autor transcreve as suas palavras lidas pela personagem Theodor Busbeck, o psiquiatra que estuda o terror ao longo da História da humanidade (não o da guerra, mas aquele em que a parte forte dizima a parte fraca), com o objetivo de obter um gráfico que permita concluir sobre a violência no futuro, de modo a chegar a uma fórmula matemática «que permita prever, que permita agir e não apenas contemplar ou lamentar». Tendo escrito cinco volumes, aplaudido durante o percurso da escrita, acaba derrotado e ridicularizado pela crítica demolidora, a partir da qual a obra deixou de ser tida em consideração, pois não agradara a gregos nem a troianos.
Ao longo da obra, o leitor é convidado a refletir sobre a problemática da violência, tal como Busbeck faz, partindo do louco individual para a «loucura do mal», ao longo da História, e pode chegar a conclusões, a partir desse microcosmos de 252 páginas.
O julgamento da História pelo psiquiatra Theodor Busbeck
Theodor[3] Busbeck é psiquiatra e pretende «captar o conceito de saúde de uma forma mais vasta: a saúde mental da humanidade»[4] - «um santo inteligente capaz de perceber os miolos da História» e «dominar a História». É precisamente a dimensão espiritual acrescentada à ciência que diferencia Theodor da comunidade científica. Essa dimensão baseada no seu instinto científico era resumida na expressão: «O homem saudável quer encontrar Deus» e acrescentava: «um homem que não procure Deus é louco. E um louco deve ser tratado». É interessante notar que Theodor conclui que a busca de Deus na História pelo homem é um fator positivo contra o horror, mas não valoriza a santidade. A diferença entre esses dois estados de espírito parece consistir na dinâmica implicada na demanda e não no pousio do ponto de chegada – a santidade.
A tese do ponto zero, como resultado do balanço entre violência exercida e recebida, implicando o fim da História de um povo ou do mundo, levou Busbeck, no último volume,  à construção de uma tabela com os povos massacrantes, os massacrados e os neutros, no futuro. Essa «profecia numérica» foi mal recebida e ridicularizada. E o autor foi considerado um crente e um louco a precisar de ser tratado no Hospício Georg Rosemberg. Em consequência, a sua obra foi fracassando.
A tese do ponto zero tem a confirmação no fim da história da obra Jerusalém. A violência extrema está representada por Hinnerk: guerra, porte de arma, canibalismo. No momento em que a violência se desencadeia sobre ele em assassínio, a história termina, exceto para Mylia que acredita em milagres. Eis o paradoxo final: a mulher doente é a mulher saudável, porque busca Deus. Isto implica a validação da tese de Theodor Busbeck em Jerusalém.

A origem do mal
No «subcapítulo [...] história do horror [...] sem medo», isto é, o horror não provocado pelo medo, Busbek segue um plano: recolha do material gráfico da distribuição do horror através dos séculos em busca de uma regularidade - «um eletrocardiograma humano», para formular uma normalidade capaz de controlar o futuro da humanidade.
·         Ao refletir sobre a violência nos dois casos infantis apresentados na obra, somos levados a pensar que a violência humana é inata[5] e que violência gera violência: a idosa cega tenta bater no cão e o neto dá-lhe dois murros nas costas e diz que foi o cão; as crianças da escola agridem verbalmente Hinnerk, o homem feio com cara de assassino, e nele vai crescendo a vontade de matar
·         Tal como na obra de Arendt, o totalitarismo, em Jerusalém, é considerado uma das origens do mal. O caso mais flagrante decorre no Hospício Georg Rosemberg, o manicómio, após o nascimento do filho de Mylia. A sua gravidez fora considerada um escândalo muito caro pela indeminização paga ao marido, Theodor Busbeck, que se divorcia, ficando Mylia ainda por dois anos no hospício sem proteção exterior. Entregue ao Diretor, ele aciona a antipatia dos funcionários e manda castrar Mylia, numa intervenção cirúrgica desastrada, que tem como consequência uma doença dolorosa e fatal.
·         A guerra e as armas são apresentadas como capazes de transformar o homem em assassino. Hinnerk, o papão das crianças da escola, estivera na guerra e, de arma na mão, escondida no bolso, está pronto a disparar. E a arma e o seu cheiro desencadeiam a violência máxima para a exercer em canibalismo sobre o mais fraco, Kaas, o deficiente motor. A arma tem tal poder que as pacíficas Hanna e Mylia, ao pegarem nela, assumem comportamentos desviantes; e Ernst dispara-a e mata Hinnerk.
·         Dentro do mundo adulto, Busbeck reflete sobre o desemprego como uma das origens do mal e cita o caso de um prisioneiro de um campo de concentração que, à saída do campo, no fim da guerra, defronta com o olhar um carrasco que fora seu colega de escola. Este justifica-se dizendo que estivera cinco anos desempregado e, a partir daí, poderiam fazer dele o que quisessem, desde que lhe dessem um emprego. O horror suspende a atividade útil e torna-se um emprego. A hipótese de que «o bem e o mal têm origem na inatividade e no tédio», leva Busbeck a considerar que o trabalho/atividade poderia ser a solução para «uma atitude moralmente neutra». Acabar-se-ia com os carrascos e com os santos. Sobre os atos bons, Busbeck concluíra que deles não rezava a História - «a santidade, historicamente, não funcionava» [Aqui, pergunto eu, e Mahatma Gandhi e Nelson Mandela?]. Parece-lhe então que os «atos de maldade pura se haviam transformado no verdadeiro motor da história».

A salvação individual pelo outro 

O solitário Ernst surge ao leitor em pleno ato suicidário, interrompido pelo insistente toque do telefone. Atende e reconhece a voz de Mylia em estado de pré-desmaio e, apesar da deficiência motora, Ernst corre para a socorrer. Com poucas forças, tenta pegar nela e acaricia-lhe o rosto. É nesse contexto que lemos os dois versos do salmo proferidos por Mylia:
«Se me esquecer de ti, Jerusalém, / que seque a minha mão direita. § Os dois abraçaram-se».
Hinnerk, pouco tempo depois do assassinato de Kaas, junta-se a Ernest para levantar Mylia. Ao ajudar o casal, sentiu diminuir a agressividade que o levara ao homicídio.
Inundava-o a sensação de alívio de estar a ajudar alguém. Contudo, numa atitude exibicionista, apresentou a arma, como uma criança exibe um brinquedo. A arma destrói a harmonia, passa de mão em mão, e Ernst mata Hinnerk. Sem saber, matava o assassino do seu filho. O casal  desfaz-se com a fuga de Ernst e Mylia a assumir a culpa de arma na mão. E, desse modo, a igreja, antes encerrada, abriu-se para ela entrar.


Hanna - «A única mulher que frequentava a casa de Hinnerk».
Considerava-o o seu noivo, zelava por ele e dava-lhe parte do dinheiro da prostituição, sem que ele pedisse ou agradecesse. Hanna sente crescer em Hinnerk a violência em simultâneo com o medo e preocupa-se, ao ponto de interromper o trabalho para o procurar, na noite fatídica de 29 de maio.

A mão direita de Mylia e o valor da memória

Mylia é apresentada a Busbeck aos dezoito anos, numa consulta psiquiátrica, como esquizofrénica, pelos pais. O desvio da normalidade estaria em ver a alma, e na sua relação com a matéria, pela sensação táctil, centrada na mão direita: «A matéria das coisas era a ocupação dos seus dias». A reflexão sobre a matéria leva-a ao ovo, «material perturbante», símbolo da transformação generosa e altruísta da matéria.
Mylia informou o psiquiatra que acreditava em tudo o que aprendera antes dos seis anos. E acrescentou: «Com seis anos sabia mais histórias da Bíblia que histórias infantis». Importante a valorização da memória. Teria sido na Bíblia que Mylia estruturara o valor da mão direita.
Se a mão direita é para os destros a mão por excelência, religiosamente ela está muito presente no velho e no novo Testamento, como sendo a mão de Deus.
Mylia, sensacionista táctil, valoriza a mão direita, sede principal das sensações tácteis e, simultaneamente, valoriza-a pelo saber bíblico. Seria com ela que tentava partir o vidro, no hospício, revelando o medo de a não sentir. Não bastava que os dedos lá estivessem, ela queria ter a certeza da existência da mão pelo sentir. A importância dada à cena da mão na obra verifica-se pela repetição por duas vezes, e, nas duas, há um louco que troça, dizendo: «Se não sentes a alma parte o vidro com ela». 
Na diegese, a expressão bíblica «Se me esquecer de ti, Jerusalém, / que seque a minha mão direita», na boca de Mylia, surge quando o médico lhe diz «que nada havia a fazer: no máximo ela viveria dois anos. Mais do que isso seria um milagre» - «seria um acontecimento espiritual e não terapêutico». Então, Mylia recordou a teoria do ex-marido: o homem saudável procura Deus. E acreditou em milagre. Nesse contexto murmurou  a frase: «Se eu me esquecer de ti, Georg Rosemberg, que seque a minha mão direita» (p.200).
A substituição de Jerusalém pelo nome do hospício parecia-lhe uma heresia. Porém, a sua história de mulher amante e mãe, com todas as consequências, nomeadamente a doença provocada pela castração, acontecera no Hospício. É saudável que recorde e  lute contra a morte a que a condenaram. Mylia une o material ao espiritual e luta pela vida, ainda que continue a ter dores.
No penúltimo capítulo, ela encontra-se no hospital-prisão, tendo alcançado o milagre da sobrevivência. Surge então a repetição: «Se eu me esquecer de ti, Georg Rosemberg...» (p.247). Claro que era impossível esquecer, a menos que enlouquecesse. E esse era o seu medo, por isso, a luta pela memória.

Terminada a leitura, constata-se que se acabara de ler um romance transcendental dentro da regra das três unidades da tragédia clássica. 
A unidade de tempo cumpre-se: a ação decorre na madrugada de 29 de maio, embora as analepses sejam muitas. 
Cumpre-se a unidade de espaço: uma cidade europeia
Também pode considerar-se cumprida a unidade de ação: Mylia, uma mulher esquizofrénica, vítima de doença incurável, provocada pela castração imposta no hospício, consegue sobreviver sem alienação, isto é, ela vive o presente, mas faz questão de não esquecer o passado. 
A vítima inocente, própria da tragédia clássica, é certamente a criança Kaas, mas também Mylia, castrada no manicómio sem sua autorização consciente.

Braga, 18 de novembro de 2018
Maria José Domingues






[1] A obra lida e citada é Jerusalém, 16ª edição, Caminho, 2015.
[2] O texto da página 141 foi encontrado em Violência e Terror em Hannah Arendt de Danilo Arnaldo Briskievicz, e referenciado na bibliografia: Arendt, Hanna: «A imagem do Inferno», in Compreensão e política e outros ensaios, Lisboa, Relógio D’Água, 2001, p.117.
[3] A escolha do nome é adequada. Tem origem no nome grego Theódoros, composto por théos “deus” e dôron “dom, dádiva”.
[4] É curioso notar que existe uma obra com este título: A violência e a história da desigualdade. Da Idade da Pedra ao Século XXI - Walter Scheidel, 2018,  Edições 70.
[5] «E com nitidez Theodor viu a cara daquela criança adquirir uma satisfação impressionante, viu-o puxar o braço direito o mais atrás possível e dar, nas costas da velha Busbeck, com toda a força que tinha, um violento segundo murro» (p.164).

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