sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

O Ano da Morte de Ricardo Reis – José SARAMAGO, 1984. Epígrafe




Textos da Epígrafe localizados no contexto http://arquivopessoa.net/textos/3842

1ª citação de Ricardo Reis (heterónimo neoclássico de Fernando Pessoa)

«Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo»

Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,
                E ao beber nem recorda
                Que já bebeu na vida,
                Para quem tudo é novo
                E imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos. ou heras. ou rosas volúveis,
                Ele sabe que a vida
                Passa por ele e tanto
                Corta a flor como a ele
                De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
                Que o seu sabor orgíaco
                Apague o gosto ás horas,
                Como a uma voz chorando
                O passar das bacantes.

E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
                E apenas desejando
                Num desejo mal tido
                Que a abominável onda
                O não molhe tão cedo.

19-6-1914
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 
 - 32.

Imarcescível- i.mar.ces.cí.vel, , imɐrsəʃˈsivɛɫ, Do latim immarcescibĭle
1. que não murchasempre viçoso
2. que não se extingue
3.figurado imperecívelincorruptível

Átropos (em grego antigo: Ἄτροπος, "inamovível", "inflexível") ou Aisa era uma das três moiras da mitologia grega, que regiam os destinos, sendo sua contraparte romana conhecida como Morta. Era considerada a mais velha das moiras, conhecida como a "inevitável" ou "inflexível", sendo ela que cortava o fio da vida. https://pt.wikipedia.org/wiki/Átropos



2ª citação – Bernardo Soares (semi-heterónimo de Fernando Pessoa):

«Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida».

Bernardo Soares - Livro do Desassossego
Aquela malícia incerta e quase imponderável que alegra...
L. do D.
Aquela malícia incerta e quase imponderável que alegra qualquer coração humano ante a dor dos outros, e o desconforto alheio, ponho-a eu no exame das minhas próprias dores, levo-a tão longe que nas ocasiões em que me sinto ridículo ou mesquinho, gozo-a como se fosse outro que o estivesse sendo. Por uma estranha e fantástica transformação de sentimentos, acontece que não sinto essa alegria maldosa e humaníssima perante a dor e o ridículo alheio. Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dor, mas um desconforto estético e uma irritação sinuosa. Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana ria à custa de outro, quando não tem direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado.
Mais terrível de que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.
Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida.
Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer para uma acção qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim consegue. Hoje já não se mata, e ele apenas me pode incomodar; se isso acontecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver mais longe a dentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o estado. Creio que a sorte soube providenciar.

s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 241.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

3ª citação: Fernando Pessoa
«Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer coisa onde quer que seja.

(Texto explicativo da multiplicidade e da heteronímia) 

Fernando Pessoa

ASPECTOS [a]

A obra complexa, cujo primeiro volume é este, é de substância dramática, embora de forma vária — aqui de trechos em prosa, em outros livros de poemas ou de filosofias.
É, não sei se um privilégio se uma doença, a constituição mental que a produz. O certo, porém, é que o autor destas linhas — não sei bem se o autor destes livros — nunca teve uma só personalidade, nem pensou nunca, nem sentiu, senão dramaticamente, isto é, numa pessoa, ou personalidade, suposta, que mais propriamente do que ele próprio pudesse ter esses sentimentos.
Há autores que escrevem dramas e novelas; e nesses dramas e nessas novelas atribuem sentimentos e ideias às figuras, que as povoam, que muitas vezes se indignam que sejam tomados por sentimentos seus, ou ideias suas. Aqui a substância é a mesma, embora a forma seja diversa.
A cada personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele deu uma índole expressiva, e fez dessa personalidade um autor, com um livro, ou livros, com as ideias, as emoções, e a arte dos quais, ele, o autor real (ou porventura aparente, porque não sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o ter sido, no escrevê-las, o «medium» de figuras que ele próprio criou.
Nem esta obra, nem as que se lhe seguirão têm nada que ver com quem as escreve. Ele nem concorda com o que nelas vai escrito, nem discorda. Como se lhe fosse ditado, escreve; e, como se lhe fosse ditado por quem fosse amigo, e portanto com razão lhe pedisse para que escrevesse o que ditava, acha interessante — porventura só por amizade — o que, ditado, vai escrevendo.
O autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente diferente do que ele é, embora parecido; filho mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas as diferenças de ser outrem.
Que esta qualidade no escritor seja uma forma da histeria, ou da chamada dissociação da personalidade, o autor destes livros nem o contesta, nem o apoia. De nada lhe serviriam, escravo como é da multiplicidade de si próprio, que concordasse com esta, ou com aquela, teoria, sobre os resultados escritos dessa multiplicidade.
Que este processo de fazer arte cause estranheza, não admira; o que admira é que haja coisa alguma que não cause estranheza.
Algumas teorias, que o autor presentemente tem, foram-lhe inspiradas por uma ou outra destas personalidades que, um momento, uma hora, uns tempos, passaram consubstancialmente pela sua própria personalidade, se é que esta existe.
Afirmar que estes homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, não existem — não pode fazê-lo o autor destes livros; porque não sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade.
Estes livros serão os seguintes, por enquanto: Primeiro, este volume, Livro do Desassossego, escrito por quem diz de si próprio chamar-se Vicente Guedes; depois «O Guardador de Rebanhos e outros poemas e fragmentos do (também, e do mesmo modo, falecido) Alberto Caeiro, que nasceu próximo de Lisboa em 1889 e morreu onde nascera em 1915. Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer coisa onde quer que seja.
Este Alberto Caeiro teve dois discípulos e um continuador filosófico. Os dois discípulos, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, seguiram caminhos diferentes; tendo o primeiro intensificado e tornado artisticamente ortodoxo o paganismo descoberto por Caeiro, e o segundo2 baseando-se em outra parte da obra de Caeiro, desenvolvido um sistema inteiramente diferente, e baseado inteiramente nas sensações. O continuador filosófico, António Mora (os nomes são inevitáveis, tão impostos de fora como as personalidades), tem um ou dois livros a escrever, onde provará completamente a verdade, metafísica e prática, do paganismo. Um segundo filósofo desta escola pagã, cujo nome, porém, ainda não apareceu na minha visão ou audição interior, dará uma defesa do paganismo baseada, inteiramente, em outros argumentos.
É possível que, mais tarde, outros indivíduos, deste mesmo género de verdadeira realidade, apareçam. Não sei; mas serão sempre benvindos à minha vida interior, onde convivem melhor comigo do que eu consigo viver com a realidade externa. Escuso de dizer que com parte das teorias deles concordo, e que não concordo com outras partes. Estas coisas são perfeitamente indiferentes. Se eles escrevem coisas belas, essas coisas são belas, independentemente de quaisquer considerações metafísicas sobre os autores «reais» delas. Se, nas suas filosofias, dizem quaisquer verdades — se verdades há num mundo que é o não haver nada — essas coisas são verdadeiras independentemente da intenção ou da «realidade» de quem as disse.
Tornando-me assim, pelo menos um louco que sonha alto, pelo mais, não um só escritor, mas toda uma literatura, quando não contribuísse para me divertir, o que para mim já era bastante, contribuo talvez para engrandecer o universo, porque quem, morrendo, deixa escrito um verso belo deixou mais ricos os céus e a terra e mais emotivamente misteriosa a razão de haver estrelas e gente.
Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura? Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?
Pensei, primeiro, em publicar anonimamente, em relação a mim, estas obras, e, por exemplo, estabelecer um neopaganismo português, com vários autores, todos diferentes, a colaborar nele e a dilatá-lo. Mas, sobre ser pequeno demais o meio intelectual português, para que (mesmo sem inconfidências) a máscara se pudesse manter, era inútil o esforço mental preciso para mantê-la.
Tenho, na minha visão a que chamo interior apenas porque chamo exterior a determinado «mundo», plenamente fixas, nítidas, conhecidas e distintas, as linhas fisionómicas, os traços de carácter, a vida, a ascendência, nalguns casos a morte, destas personagens. Alguns conheceram-se uns aos outros; outros não. A mim, pessoalmente, nenhum me conheceu, excepto Álvaro de Campos. Mas, se amanhã eu, viajando na América, encontrasse subitamente a pessoa física de Ricardo Reis, que, a meu ver, lá vive, nenhum gesto de pasmo me sairia da alma para o corpo; estava certo tudo, mas, antes disso, já estava certo. O que é a vida?

1930?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
  - 95.
[Prefácio para a edição projectada das suas obras]












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