domingo, 29 de maio de 2016

Aquele Outro - Mário de Sá-Carneiro






O dúbio mascarado - o mentiroso
Afinal, que passou na vida incógnito.
O Rei-lua postiço, o falso atónito -
Bem no fundo, o cobarde rigoroso.

Em vez de Pajem, bobo presunçoso.
Sua alma de neve, asco dum vómito -.
Seu ânimo, cantado como indómito,
Um lacaio invertido e pressuroso.

O sem nervos nem Ânsia - o papa-açorda,
(Seu coração talvez movido a corda...)
Apesar de seus berros ao Ideal.

O raimoso, o corrido, o desleal -
O balofo arrotando Império astral,
O mago sem condão - o Esfinge gorda...

Paris fevereiro 1916


Neste poema estamos perante a dimensão dramática da poesia, na qual se potencia, segundo Cabral Martins, a «transformação do discurso lírico numa arte de dissonância, como em Eliot, Apollinaire e Pessoa». Este poema seria o exemplo disso - «um texto de vozes que se cruzam e se fixam num soneto que lhes dá forma arquitectural»[1].

MJD



[1] In O Modernismo de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Cabral Martins, 1997, Editorial Estampa, Lisboa, 327.

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