segunda-feira, 4 de abril de 2016

TABACARIA e a «nova poesia portuguesa» de Fernando Pessoa



 

1. Pessoa admirador de Shakespeare

Fernando Pessoa, 1913 - «Quem quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de sonho

Shakespeare:

·        PRÓSPERO (obra - A Tempestade)
«[…]
O nosso entretenimento acabou. Estes actores,
Como já te tinha dito, são todos espíritos,
Esvaíram-se no ar como finos vapores;
E, tal como é ilusória esta visão,
Também as altas torres, os palácios soberbos,
Os templos solenes e mesmo este grande globo
E todos os que o ocupem, se desvanecerão,
Sem deixar um só rasto, tal como os espíritos
Se dissolveram no ar. A matéria que nos compõe
É igual à dos sonhos[1]; e a nossa curta vida cercada por um sono. Sinto-me vexado. […]»

(tradução de Fátima Vieira)

·        HAMLET Monólogo de Hamlet:

 “Ser ou não ser, eis a questão! O que será mais nobre para o espírito humano: sofrer os ataques e as frechadas da fortuna adversa, ou pegar em armas contra um mar de dores e, enfrentando-as, pôr-lhes termo? Morrer… dormir; mais nada! E dizer que se acaba com as penas do coração e os mil choques de que é herdeira a carne! Eis um fim a desejar ardentemente! Morrer … dormir! Dormir… Sonhar talvez! Aí é que está o problema! Porque há que pensar nos sonhos que virão neste sono eterno, quando nos libertarmos desta mortal crisálida! É este raciocínio que nos leva à desgraça de uma vida tão longa! […]»

William Shakespeare
(Tradução de Ricardo Alberty, Hamlet, in Shakespeare II, Verbo, Lisboa, São Paulo, 1975, p.102).

2. Alguns textos programáticos de Fernando Pessoa que iluminam a leitura do poema Tabacaria,



  •  considerando que o poema atinge o equilíbrio perfeito entre poesia subjetiva e poesia objetiva:

«A NOVA POESIA PORTUGUESA NO SEU ASPECTO PSICOLÓGICO» ( artigos publicados na revista A Águia, em 1912):
«[…] Perscrutemos qual a estética da nova poesia portuguesa.
A primeira constatação analítica que o raciocínio faz ante a nossa poesia de hoje é que o seu arcaboiço espiritual é composto de três elementos — vago, subtileza e complexidade. São vagas, subtis e complexas as expressões características do seu verso, e a sua ideação é, portanto, do mesmo triplo carácter.
[…]O simbolismo é vago e subtil; complexo, porém, não é. É-o a nossa actual poesia; é, por sinal a poesia mais espiritualmente complexa que tem havido, excedendo, e de
muito, a única outra poesia realmente complexa — a da Renascença, e, muito especialmente, do período isabeliano inglês. O característico principal da ideação complexa — o encontrar em tudo um além — é justamente a mais notável e original feição da nova poesia portuguesa.
[…]Mas a nossa poesia de hoje é, como acima dissemos, mais do que subjectiva. Absolutamente subjectivo é o simbolismo: daí o seu desequilíbrio, daí o seu carácter degenerativo, há muito notado por Nordau. A nova poesia portuguesa, porém, apesar de mostrar todos os característicos da poesia de alma, preocupa-se constantemente com a natureza, quase exclusivamente, mesmo, na natureza se inspira. Por isso dizemos que ela é também uma poesia objectiva.
[…] A nossa poesia caminha para o seu auge: o grande Poeta proximamente vindouro, que incarnará esse auge, realizará o máximo equilíbrio da subjectividade e da objectividade».


  •  considerando que Pessoa escolheu o “terceiro caminho”:
«A Arte Moderna é arte de sonho» (texto de 1913) - «O poeta de sonho é um melódico, um acorrentado na música dos seus versos, como Ariel estava preso na curva [?] de Sycorax. A música é essencialmente a arte do sonho: e o desenvolvimento da música moderno todo, no que valioso e grande, é a composição suprema de quanto aqui teorizamos. O poeta sonhador, porque sonhador, é até certo ponto músico. E para comunicar o seu sonho precisa de se valer das coisas que comunicam o sonho. A música é uma delas.
O poeta de sonho é geralmente um visual, um visual estético. O sonho é da vista geralmente. Pouco sabe auditivamente, tactilmente. E o “quadro”, a “paisagem” é de sonho, na sua essência, porque é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior. (Quanto mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho).
Havia 3 caminhos a seguir ante este novo estado civilizacional:  […] 3) Metendo esse ruidoso mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho — e fugindo da “Realidade” nesse sonho. É o caminho português (tão caracteristicamente português) — que vem desde Antero de Quental cada vez mais intenso até à nossa recentíssima poesia» (http://arquivopessoa.net/textos/1415).


3. Álvaro de Campos mais do que um heterónimo

« […] pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida» (Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935).

Álvaro de Campos é considerado mais do que um heterónimo pelo facto de ter sido um duplo de Fernando Pessoa na sua figura, mas mais aguerrido socialmente junto de Ofélia, no encontro com Gaspar Simões e José Régio e nas entrevistas dadas a jornais.
O poeta sensacionista apresenta-se dividido em duas fases separadas no tempo pelo suicídio do amigo e correligionário de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, em 26 de Abril de 1916. Os dois amigos tinham criado o sensacionismo[2] e comungaram na paternidade de ORPHEU.
Até 1916, Álvaro é o engenheiro futurista assanhado das Odes; depois, silencia-se para apenas aparecer em 1920 a assinar cartas de Ofélia e, a partir de 1923, regressa outro - o poeta a quem Cabral Martins chamou o Metafísico, «o grande Campos da grande Tabacaria»[3], poema considerado por Rémy Hourcade «o mais belo poema do mundo»[4].
Esta fase metafísica, entre 1928 e 1930, foi de grande produção poética caracterizada pela interioridade solitária que espreita, por vezes, pelas janelas, privilegiando as sensações visuais.
Os temas metafísicos que se encontram no poema Tabacaria são transversais à obra pessoana. Carlos Filipe Moisés desenvolve, em O Poema e as Máscaras, a «tentativa de interpretação da poesia de Fernando Pessoa, encetada a partir da análise exaustiva de um poema». Na «Introdução» da obra, escreve que «a ideia central diz respeito ao papel de destaque cumprido pelo poema “Tabacaria” no conjunto da obra de Fernando Pessoa […], por sua configuração fechada e coesa, verdadeira síntese de uma visão do mundo» e «por constituir uma súmula da problemática pessoana, não só de Álvaro de Campos, heterónimo que a assina, mas a problemática de toda a poesia do criador de Mensagem». O projeto de Moisés «implica a ideia da unidade subjacente à obra de Pessoa, a despeito da sua aparente diversidade» - tese perfilhada por Jacinto do Prado Coelho e explanada na sua obra, Unidade e diversidade em Fernando Pessoa. Moisés cita Prado Coelho, mas também cita Adolfo Casais Monteiro num ponto de convergência: «essa unidade está na própria estrutura de qualquer dos sentidos da sua obra, numa orientação fundamental que está em ser ela uma cadeia ininterrupta de esforços para estabelecer o contacto do homem com o universo».
A referida obra de Carlos Filipe Moisés elenca a «estrutura e cosmovisão» do poema em seis itens: «o nada e o mistério; sonho e realidade; projeto existencial; poesia e inocência; o mito e a máscara; a realidade plausível». Neste esquema insere não só Tabacaria como toda a poesia ortónima e heterónima[5].

Para Cabral Martins, o final de 1930 encerra a fase metafísica de Álvaro de Campos e dá início à fase «do engenheiro aposentado».

4. A construção do Super-Camões

Debruço-me mais uma vez sobre o poema Tabacaria de Álvaro de Campos e encontro as teorias de Fernando Pessoa em ação com a preocupação da busca da referência para a poesia metafísica, assunto tratado por ele nos artigos de 1912, publicados na revista A Águia do movimento Nova Renascença Portuguesa. Nesses artigos, Pessoa expõe a teoria do transcendentalismo panteísta, sobre a qual escrevi, em «Fernando Pessoa e a «nova poesia portuguesa: da teoria à concretização em Pauis»:

A nova poesia portuguesa deveria conjugar a característica do equilíbrio entre poesia subjectiva e poesia objectiva, resultante da fusão «da poesia da alma e da natureza», em penetração mútua, com «essa estranha e nítida originalidade»: «a espiritualização da Natureza e, ao mesmo tempo, a materialização do Espírito». […] Consciente da problemática que rodeia o termo «transcendentalismo», Pessoa trabalhou-o no sentido da metafísica e da subjectividade, mas também da objectividade, em busca do «equilíbrio»[6]

 Em Tabacaria, encontro, tal como no poema Pauis, o «transcendentalismo panteísta» pessoano - espírito e matéria, matéria e espírito, em fusão, através do enunciado poético, metafórico, meticulosamente trabalhado, a fim de «emocionalizar uma ideia».
Nesta revisitação, constato que toda a arte poética teorizada por Fernando Pessoa, em 1912, se processa artisticamente no poema Tabacaria de Álvaro de Campos.
Assim, vejamos de que forma Álvaro de Campos procede poeticamente.

A poesia subjetiva, isto é, a «poesia da alma» está bem presente logo no primeiro verso, ao qual subjaz o paradoxo «ser ou não ser» hamletiano, que se vai desenvolvendo sobretudo ao longo da sexta estrofe - «Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou».

Vejamos as três características da poesia objetiva, apresentadas por Pessoa nos artigos de 1912:

·        a nitidez traduzida por epigramatismo («frase sintética, vincante, concisa»),
·        a plasticidade («a fixação expressiva do visto ou ouvido como exterior, não como sensação, mas como visão ou audição»)
·        e a imaginação («pensar e sentir por imagens») (FP. AA3: 92-93).

Tendo em conta que imaginar é também reestruturar campos semânticos até então opostos, assimilando-os entre si, no discurso, para obter a novidade de uma significação emergente nos termos da frase, constata-se que, no poema em estudo, a poesia objetiva que se encontra na narrativa - um eu poético masculino, que se desloca entre a cadeira e as janelas do seu quarto, pertencente a uma casa enfileirada com outras casas, tendo como paisagem a rua, onde se situa a tabacaria, que frequenta e, por isso, conhece o dono e certamente parte da clientela, nomeadamente o Esteves - mais não é que um quadro imaginário para a construção poemática, servindo de base à enunciação metafórica.
Vejamos os seguintes versos da terceira estrofe:

 […] tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


A enunciação metafórica faz-se através do choque do campo semântico das casas que ladeiam a rua com o campo semântico do comboio, para obter um significado extra: a caminhada apressada para a morte sem regresso, por oposição à morte lenta do verso final da segunda estrofe:

«Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada do nada».


Com essas características da poesia objectiva em fusão com a poesia subjectiva, segundo Pessoa, a poesia estaria a «caminhar para o seu auge: o grande Poeta proximamente vindouro, que incarnará esse auge, realizará o máximo equilíbrio da subjectividade e da objectividade. […] Super-Camões lhe chamámos, e lhe chamaremos, ainda que a comparação implícita, por muito que pareça favorecer, anteamesquinhe o seu génio, que será, não de grau superior, mas mesmo de ordem superior ao do nosso ainda-primeiro poeta».

Analisando o poema Tabacaria através destes parâmetros, pode concluir-se que o heterónimo Álvaro de Campos atinge o «auge» poético, previsto em 1912 por Pessoa nos artigos sobre a «nova poesia portuguesa». Isto acontece, pelo facto de Pessoa ser um homem que concebe projetos e os realiza. Nesse ano de 1912, ele projetou que a nova poesia portuguesa iria construir uma nova renascença portuguesa «em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “daquilo de que os sonhos são feitos”». E com a citação de Shakespeare, conclui que o verdadeiro e supremo destino nacional, «de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente» através da poesia.

Maria José Domingues



Bibliografia:

Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, coordenado por Fernando Cabral Martins, Caminho, 2008.
O Poema e as Máscaras, Carlos Filipe Moisés, Almedina, Coimbra, 1981.
Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, COELHO, Jacinto do Prado (1987) –
, 9.a edição, Lisboa, Editorial Verbo.

http://www.lusosofia.net/textos/20130604-domingues_maria_jose_fernando_pessoa_e_a_nova_poesia_portuguesa.pdf

Os textos do escritor Fernando Pessoa (ortónimo e heterónimo) foram retirados da pesquisa em http://arquivopessoa.net/ - 






[1] "Nós somos feitos do tecido de que são feitos os sonhos."- We are such stuff as dreams are made on - "The Tempest" in: The works of Mr. William Shakespear;: in six volumes. Adorn'd with cuts - Volume 1, Página 48, William Shakespeare, Nicholas Rowe - Printed for Jacob Tonson, 1709 - 3324 páginas (https://pt.wikiquote.org/wiki/William_Shakespeare).
Fernando Pessoa utilize a expressão no final do seu terceiro artigo, «A nova poesia portuguesa no seu aspeto psicológico»: «E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “d’aquilo de que os sonhos são feitos”. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente».


[2] «O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Provavelmente é difícil destrinçar a parte de cada um na origem do movimento e, com certeza, absolutamente inútil determiná-lo. O facto é que ambos lhe deram início» (Álvaro de Campos, in http://arquivopessoa.net/textos/2821)
[3] Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, coordenado por Fernando Cabral Martins, Caminho, 2008, p.128.
[4] Pierre Hourcade com Casais Monteiro e Armand Guibert traduziram Tabacaria para francês nos anos 50 - Le bureau de tabac - e Rémy Hourcade considerou esse poema «o mais belo poema do mundo» e voltou a traduzi-lo nos anos 80 do século passado (http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/viewFile/7190/5188).
[5] Carlos Filipe Moisés, O Poema e as Máscaras, Almedina, Coimbra, 1981, pp 7-16.

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