quarta-feira, 2 de março de 2016

António Tabucchi, Afirma Pereira - «Confederação de almas»



Clube de leitura – Março 2016, António Tabucchi, Afirma Pereira

Antonio Tabucchi: «é este o fascínio da literatura: cada livro é uma coisa diferente»

Assunto: «Confederação de almas»

 

Pessoa, por Júlio Pomar



1. Tabucchi liga-se a Portugal a partir do momento em que lê o poema Tabacaria de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa. Declara isso no excerto da entrevista dada a Anabela Mota Ribeiro - http://anabelamotaribeiro.pt/57601.html.

«É verdade que comprou o Pessoa num quiosque de Paris, foi lê-lo para Itália, e ficou de tal modo estarrecido que decidiu aprender minimamente a língua?
Mais ou menos. Desconhecia completamente o português, o mundo português, a cultura portuguesa e até a geografia de Portugal. Estava a voltar para Itália, depois da tal passagem de um ano em Paris. Comprei por mero acaso um livrinho que era a primeira tradução francesa, e acho que em todas as línguas, do Pessoa. Mesmo que naquela altura não tivesse uma grandíssima intuição ou cultura, suspeitei que aquilo era um grande, grande poema («Tabacaria»). Como acontece naquela idade, a uma descoberta como esta seguiu-se o entusiasmo. Pensei que seria interessante aprender um bocadinho a língua na qual este senhor escreveu o seu poema. Regressando à universidade vi que entre as várias disciplinas, no âmbito da Filologia Românica, havia a língua portuguesa. Comecei a estudar português e, meses depois, cheguei a Portugal».


2. Na obra Afirma Pereira, o protagonista – o sujeito que afirma – é católico e acredita na ressurreição da alma, mas não quer acreditar na ressurreição da carne, isto é, do seu corpo obeso. A meio da obra, o Dr. Pereira faz um tratamento na Clínica Talassoterápica da Parede e conhece o Dr. Cardoso que o analisa psicanaliticamente, atendendo a que Pereira sente uma mudança de personalidade, a partir do momento em que Rossi, o auxiliar por si contratado, entrou na sua vida. O Dr. Cardoso expõe então a tese dos médicos filósofos franceses, Théodule Ribot (1839-1916) et Pierre Janet (1859-1946), intitulada a «Confederação das Almas». Segundo esta teoria, cada indivíduo não possui uma só alma (eu), mas várias (um eu plural), sendo que uma se torna hegemónica.

Na continuação da entrevista acima referida, o autor referiu Pirandello (1867-1936), como o primeiro autor influenciador da «confederação das almas», mas talvez tenha sido na obra de Fernando Pessoa que ele vira claramente a teoria espelhada.


E Tabucchi explica: «Quando descobri o Pirandello, vírgula, sem o descobrir, vírgula, foi no liceu. Era uma leitura obrigatória. Mas logo a seguir, no intervalo que tive entre o liceu e a universidade, senti o desejo e a curiosidade de descobrir certas coisas e de reler certos autores, entre os quais o Pirandello. A partir daí as descobertas foram por analogias. Foram as leituras de uma analogia que me parece muito importante no século XX na literatura, na filosofia, na psicologia: a psicanálise. A descoberta que a alma cristã, que é o arquétipo, não é una e indivisível, mas que o homem tem dentro de si quase um exército que constitui nesta multiplicidade uma especificidade e unidade que é aquela pessoa. Isto passa-se com o Pirandello, com o Pessoa, com o Unamuno, com o Freud, enfim, com uma grande parte da grande literatura do século XX.


[…]
A imagem que se tem de si é, então, algo redutora: a de um italiano que chegou a Portugal e se apaixonou por Portugal através de Pessoa.
Mas isso está certo; uma coisa não exclui a outra. Como dizia o Pessoa, tudo vale a pena se a alma não é pequena. Dentro de mim não cabe só o Pessoa. 
Qual o heterónimo de Pessoa com que se identifica mais?
Não sei. 
O Álvaro de Campos talvez lhe fosse bem; é um niilista.
E de uma ironia muito cortante. Gosto muito do Bernardo Soares, também. Foi capaz de fazer metafísica nas barbearias!, não é fácil.»


3. Para uma explicação científica e atual da referida «confederação das almas», ouçamos António Damásio em O Livro da Consciência (com epígrafe pessoana do Livro do Desassossego - «Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas,  timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia»):

«O eu e a consciência não acontecem numa só área, região ou centro de cérebro». 
«A mente consciente resulta da articulação fluída entre vários locais do cérebro». 
«O derradeiro produto da consciência ocorre a partir desses inúmeros locais cerebrais funcionando ao mesmo tempo».
 «Não ocorre num local único e assim se assemelha à execução de uma peça sinfónica, que não resulta do trabalho de um único músico, nem de uma só secção de uma orquestra».



4. O universo narrativo de Afirma Pereira situa-se sobretudo em Lisboa no ano de 1938 – ano politicamente adverso à democracia e à república. 
Na obra, o autor interpreta com mestria a evolução da alma portuguesa afeiçoada à rotina, mas evolucionando face à falta de liberdade e à agressividade fascista e hipócrita silenciada na comunicação social. A questão da cultura, politicamente acética e higienizada pela censura, é fulcral no desenvolvimento da obra, que apresenta a consciência do protagonista como o campo de batalha entre as contradições da religião e do regime.
 A literatura europeia da época surge a propósito da secção das efemérides e obituários da revista cultural dirigida pelo Dr. Pereira no jornal Lisboa. Os escritores da época (Mauriac, Bernanos, Claudel, Gabriele d'Annunzio, Marinetti, Garcia Lorca, Thomas Mann, etc.) são avaliados pelas atitudes políticas perante o fascismo galopante, a partir dos textos impublicáveis escritos pelo ajudante Rossi.
Se é certo que a condição humana é a base da obra com a morte como ideia predominante na cabeça do protagonista, também é certo que o humor provoca o sorriso do leitor e a vontade de o partilhar. Esse humor nasce sobretudo da repetição («afirma Pereira») e do contraste – alma leve vs corpo obeso e a questão da «ressurreição». Mas também surge o cómico de situação, por exemplo, na preparação do banho de mar a caminho da Clínica Talassoterápica da Parede.

Concluindo, a leitura da obra, condição humana doseada de humor, faz-se com agrado. A narrativa é construída com originalidade. O leitor pode ainda enriquecer os seus conhecimentos político-literários, a partir das muitas referências a escritores do século XX, na sua relação com os fascismos europeus.



Antonio Tabucchi por DAVIDE BENATI

 
 
 






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