segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O DELFIM de José Cardoso Pires - Portugal dos anos sessenta




«Cá estou» - frase estranha para começo de obra-prima. Porém, faz sobressair o lugar e o sujeito do verbo estar. «Estar é ser» escreve Álvaro de Campos na revista presença.
Mais adiante, eis a resposta identificadora do «eu» que narra em O DELFIM: «Sou um visitante de pé (e em corpo inteiro, como numa fotografia de álbum), um Autor apoiado na lição do Mestre».
O Mestre explícito é fictício - o abade Agostinho Saraiva, decifrador do território da Gafeira, entre 1790 e 1801, numa obra intitulada Monografia do Termo da Gafeira, que o «Autor» / narrador tem sob a mão direita, uma vez que ele é o deus criador do universo da narrativa e, como nos diz José Saramago, deus é maneta, pois apenas se lhe aponta a mão direita e não se sabe nada acerca da mão esquerda.
A escolha do topónimo Gafeira é de grande importância na obra. Percorrendo Portugal encontramos topónimos apontadores de gafos (leprosos), por exemplo, no distrito de Aveiro, Gafanha da Nazaré, e, no distrito de Setúbal, a Quinta da Gafaria. Tomemos o topónimo como a metáfora escondida por razões políticas de Portugal salazarento e gafento, envolto em névoa. A névoa da Gafeira provém da Lagoa, lugar simbólico do pântano português. Também se poderia associar ao verso do poema Nevoeiro de Fernando Pessoa, último poema da Mensagem: «Ó Portugal, hoje és nevoeiro...».

«Cá estou», a 31 de Outubro de 1967; ‘Já cá estive’, a 31 de outubro de 1966 - «datas de caçador». De que anda à caça o «Autor» / narrador?
Sabe-se que o cauteleiro anda à caça de informações: «O Infante?» – indaga «a pedir-nos contas». E acrescenta: «Crime», e vai espetando o dente único e inquisidor cosendo a intriga discutida em praça pública. Certo é que morreram a esposa do Infante e o criado mulato, no espaço daquele ano em que o narrador se ausentara.
Então, o «Autor» / narrador parte à caça das recordações de há um ano com envolvência do Infante, para ele o Engenheiro, de sua mulher, Maria das Mercês, e do criado mestiço. A primeira cena é cinematográfica e reporta-se à saída da missa pela porta da igreja que dá para o Largo, paisagem próxima da janela do quarto do narrador voyeur, cujas sensações visuais são transmitidas ao leitor como o registo de uma câmara de filmagem: um jaguar[1] com dois cães negros, o criado e o casal, embarcados na «Barca do Inferno». O Engenheiro não fita ninguém – era a tal regra: «Estes tipos quanto mais nos olham, menos nos querem ver…», acrescentando que o seu tio Gaspar não olhava o povo «por pena», «receava que essa gente cegasse quando lhe sentisse o brilho do olhar». Eis o distanciamento de classes sociais da sociedade portuguesa na época. Todavia, já era notório o peso do olhar pejado de crítica social por parte do povo, na frase do Engenheiro.

O Largo é o grande espaço desertificado, dominado pelo muro/muralha, que parte da sacristia e o ensombra. Dentro do universo metafórico, teríamos um país esburacado, pobre, desertificado pela emigração e pela guerra do ultramar, dominado pelo muro da opressão que sai da igreja e ocupa a lagoa. Não há melhor painel, a que não falta a romanização dominadora de antanho, nem o símbolo da classe dominante: o jaguar.
Apesar do nevoeiro e do fumo, a confiança na história da humanidade dentro do ideário neorrealista mantém-se firme num universo eivado de dispersão.

A igreja reforma-se com o Padre Novo; a classe dominante autodestrói-se pelo crime dúbio que envolve a morte da esposa e a do criado; o povo vencedor ocupa a lagoa fértil por direito dos Noventa e Oito homens da Gafeira que a adquiriram em hasta pública.

23 de novembro de 2015
Maria José Domingues


[1] No âmbito da intertextualidade, recorda-se que Alves Redol, o mestre do neorrealismo, em O Muro Branco (1966), inicia a obra com a chegada de um automóvel topo de gama á porta do café, para espanto de todos, certamente o Lancia de boca entreaberta como um peixe. O dono do carro era D. António de Farragudo, frequentador do café, no qual tinha a sua corte. Também o Engenheiro, antes de ter o Jaguar, tivera um Lancia . Se é certo que os automóveis topo de gama representam o poder e o dinheiro, talvez a metáfora também possa significar a evolução estilística dentro do mesmo ideário.

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