terça-feira, 27 de janeiro de 2015

II. MAR ME QUER de Mia Couto – a construção da delicadeza




A obra surpreende e toca pela delicadeza da expressão poética assente na oralidade. Essa delicadeza  poético-narrativo é ponto de partida para a leitura graças à epígrafe do primeiro capítulo, extraída de «Ditos do avô Celestiano, reinventando um provérbio macua»:

Deus é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se, se não segurarmos bem cai.


Sentimos que Mia Couto pretende segurar o ovo frágil para o passar cuidadosamente ao leitor.

O primeiro capítulo abre em  diálogo sorridente entre o narrador protagonista Zeca Perpétuo, que se define como feliz e preguiçoso, uma vez que a infelicidade dá muito trabalho, e Dona Luarmina que o espicaça para a vida. E é sobre a vida e o futuro que Zeca tem tiradas de filósofo:

A vida, Dona Luarmina? A vida é tão simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô Celestiano sobre pensarmos Deus ou não-Deus…
[…]
Sim, como se diz futuro? Não se diz, na língua deste lugar de África. Sim, porque futuro é uma coisa que existindo nunca chega a haver. Então eu me suficiento do atual presente. E basta.

Dona Luarmina solicita memórias exatas ao vizinho Zeca Perpétuo, que tenta recusar-lhas, pois elas encontram-se espalhadas por todo o seu corpo:

Meu corpo foi-se tornando um cemitério de tempo, parece um desses bosques sagrados onde enterramos os nossos mortos.

Mas a Luarmina só interessam as memórias de verdade de Zeca, enquanto a este apenas interessa viver preguiçosamente no presente da sua reforma de pescador bem avizinhado. Todavia, ele contará, a pedido insistente da vizinha, as suas histórias do passado no presente dialogado com Luarmina. Entre os dois, dá-se, em construção verbal delicada, a dança de palavras da poética do desejo de Zeca e da fuga constante da vizinha, criando mais um incentivo de leitura até ao  desfecho surpreendente.

Maria José Domingues

2 comentários:

  1. II. MAR ME QUER - construção da delicadeza.
    A convocação que senti e me foi feita por Maria José Domingues, a propósito do MAR ME QUER, de Mia Couto, obrigou-me à procura do livro e, não descansei enquanto não o tive nas mãos. Foi uma tarde e parte da noite de domingo, absolutamente, entregue a uma relação de presença viva, na ausência, entre os principais protagonistas do BEM ME QUER, bem como à aproximação entre autor/criador e leitor.
    Maria José Domingues, nesta II parte do seu trabalho - a construção da delicadeza - em que decidi focar-me, é surpreendente, tal como a obra o é, pela clareza com que põe a nu, a delicadeza poético-narrativa, assente na oralidade. Sente-se no decorrer da leitura, ao entrar-se dentro das almas e corpos, na sua indissolubilidade, de Luarmina e Zeca Perpétuo, bem expressos nos diálogos, entre ambos. É notável como Mia Couto, o criador desta e de outras obras, sempre poéticas, consegue trazer para o discurso escrito, a oralidade que se sente em carne viva.
    E realço a maestria com que o autor consegue manejar, ao ligar estruturas da Língua Portuguesa com linguagens nativas, nomeadamente, a macua, trazendo para a superfície da Comunicação, toda a sua riqueza, nas diferentes dimensões.
    Fascinantes são os provérbios que, no início da cada um dos capítulos, são colocados em epígrafe, todos lembrados pelo avô Celestiano, que consubstanciam a sua sabedoria e encerram memórias, simbólicas ou reais, dos antigos e que marcam o presente. Indelevelmente: o corpo como "cemitério
    de tempo." E, sem que se possam encadear e manter na escuridão do tempo.
    O pai de Zeca vai re-atualizar essas memórias.
    Não posso, como não crente e, na minha totalidade de pessoa, deixar de referir o primeiro provérbio - "Deus é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo...".
    É sublime como é colocado este dilema: Deus pode, em qualquer dos casos, desaparecer. E Mia Couto, na escolha deste provérbio macua, trata o seu desenvolvimento com enorme delicadeza, no respeito pela liberdade, mas também, coloca o problema de sugerir a pergunta dolorosa: para que serve deus, se os que dele necessitam, têm de usar de todo o cuidado para que nem o apertem muito, nem o deixem cair.
    Aprender até Morrer é um sítio criado por Maria José Domingues, oonde se aprende e se cumpre o título do blogue.
    Eu, tenho muito a aprender. E já ganhei, com o prazer e privilégio da leitura do MAR ME QUER, suscitada pelas enriquecedoras e cuidadas reflexões da autora.

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  2. Agradeço o comentário filosófico de leitora entusiasta da obra de Mia Couto. Comungamos o prazer de a ler e Mar Me Quer é fonte de prazer e de aprendizagem de uma filosofia de vida antiga e reinventada em linguagem literária contemporânea. Esperamos vir a ter o prazer de assistir a Mia Couto Prémio Nobel da Literatura do português de Moçambique

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