segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Viagens da Minha Terra – lendo e treslendo Almeida Garrett




Em cinquenta e poucos anos de vida, Almeida Garrett percorreu a literatura, cultivando e praticando o classicismo e o neoclassicismo, o pré-romantismo e o romantismo e até criou a palavra “ultra-romântica», para adjetivar a "escola" que saturava o público com exageros e "estimulantes violentos".


Em 1843-44, viúvo da sua amada Adelaide Pastor e com uma filha ilegítima nos braços – “um filho no berço e uma mulher na cova” (cap. XI) -, apaixonado por Rosa de Montufar, viscondessa da Luz, o “eu” romântico vai surgir em projeções literárias, sendo uma dessas projeções o “eu” do narrador de Viagens na Minha Terra, fazendo o leitor circular na sua corrente de pensamento em estilo criado para o efeito («Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há de fazer crónica»). A outra projeção garrettiana faz-se em Carlos, o herói romântico da novela «A menina dos rouxinóis».

«Quem diz Romantismo diz arte moderna», proclamava Baudelaire em 1846. Os avanços literários da «arte moderna»  foram conhecidos por Garrett, durante o exílio na Inglaterra e na França.

Viagens na Minha Terra abre com epígrafe de Voyage autour de ma chambre de Xavier De Maistre (1763-1852). O primeiro capítulo começa, em intertextualidade, num confronto entre o gélido clima de S. Petersburgo, onde De Maistre escrevera a sua obra, e o bom clima de Portugal, que permite viajar ao ar livre com prazer. Com efeito, a valorização de Portugal e do povo português é uma constante na obra; porém, a governação portuguesa é objeto de dura crítica.

De facto, o povo português, sacrificado na luta fratricida entre dois irmãos oponentes nos seus interesses e nos seus ideais, sai reabilitado literariamente. Logo no primeiro capítulo valoriza o gosto popular:
«Assim o povo, que tem sempre melhor gosto e mais puro do que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações, e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade».

A obra e o mito é o tema desenvolvido por Garrett no segundo capítulo. Veja-se o que escreveu: «Primeiro que tudo, a minha obra é um símbolo... é um mito, palavra grega, e de moda germânica, que se mete hoje em tudo e com que se explica tudo... quanto se não sabe explicar». [Pessoa dirá: «O mito é o nada que é tudo»] Garrett continua «é um mito porque…» e vai explicar o oculto da sua viagenzita: a filosofia que chega de além-Reno, talvez de Hegel (1770-1831), e que explica a marcha das civilizações, o progresso, através da dicotomia: espiritualismo, personificado em D. Quixote, e materialismo, em Sancho Pança. E acrescenta: «Mas, como na história do malicioso Cervantes, estes dois princípios tão avessos, tão desencontrados, andam contudo juntos sempre, ora um mais atrás, ora outro mais adiante, empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se poucas, mas progredindo sempre».

Conclui que se vive no reino da Barataria, a ilha de Sancho Pança, na esperança de que um dia venha o reino de D. Quixote.

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